Missão Ad gentes em contextos sem fronteiras: Desafios no mundo digitalizado






          Até hoje, a Igreja com seus silêncios institucionais, não se reconciliou com a vida pública democrática. Ela tem medo das regras dessa sociedade, que cobra transparência, autenticidade e participação. Se nessa sociedade dominada por uma paisagem medial secular, uma autoridade com exigências éticas severas, como a Igreja, comete deslizes, a vontade de morder é maior que em outros casos. O carro de um membro que pertence à uma organização com a pretensão de ser uma instituição pobre para os pobres é diferentemente avaliadoque o Mercedes de um deputado federal ou o dono de um conglomerado midiático.


          Terceira Parte da palestra:

3. Construção da cultura do encontro em comunidades e redes


          “Nova colonização”, “distância física” e “relacionamentos” desiguais entre destinatários e emissores de mensagens caracterizam as desvantagens do mundo digital. Sem desprezar as novas possibilidades do mundo digital, a pastoral deve priorizar os trilhos da mística e da profecia que atravessam a “cultura do encontro”.

          3.1. Dimensão mística

          A pastoral do encontro prioriza o relacionamento igualitário entre destinatário e emissor de mensagens, porque ambos são agentes de pastoral e sujeitos da evangelização. Levam em conta a reciprocidade e reversibilidade entre destinatário e emissor. O sonho do número grande ou até da totalidade dos destinatários, alimentado pelo mundo digital, é pago com a moeda da amizade que exige proximidade:


Só a proximidade que nos faz amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia os pobres se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja (DAp 398).



      Os pobres representam o ponto de partida, não a totalidade dos sujeitos da pastoral, que são os batizados: “Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé […] A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120). Quem experimentou “o amor de Deus que o salva”, é discípulo-missionário, capaz de proclamar: “Encontramos o Messias” (Jo 1, 41) (EG 120):

A melhor motivação para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor […]. Por isso, é urgente recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que somos depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova (EG 264).

         Dois braços representam a “cultura do encontro”: a prática no plural das comunidades e o anúncio na comunidade universal do mundo. Na realidade pastoral ainda não assumimos as tarefas que emergem desta situação: a vigilância ética e humanitária sobre as novas tecnologias de comunicação, o ceticismo contra todas as ofertas gratuitas feitas nas redes e, positivamente, o imperativo da diversificação da pastoral entre as ramificações da comunicação. Além das questões meramente econômicas que tratam da geração de lucros, se impõem questões político-culturais ao debate, por exemplo, a questão entre chaves de comunicação universal, que o mundo digital oferece, e a questão de comunicação contextual e cultural que emerge da oralidade.

       A roda da “conversão pastoral” deve girar em torno dos dois eixos da multiplicação universal dos destinatários e usuários, e da contextualização cultural (encarnação) da mensagem. Trata-se da interação de dois polos: de uma contextualização universal e de uma universalidade contextualizada. O preço que a pastoral pagaria pela mera universalização digitalizada seria o esfriamento das relações humanas, e, pela mera contextualização, o encolhimento numérico e o encurtamento do horizonte para níveis paroquiais fechados. Não temos a possibilidade de escolher entre um ou outro em torno dos quais se criariam grupos de partidários militantes e grupos opostos. Os místicos, como Nicolau de Cusa, nos falam da coincidência dos opostos, assumida na Evangelii gaudium do Papa Francisco. É possível:


desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda. Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste (EG 228).

          A “unidade multifacetada que gera nova vida”, e “conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste” é, desde tempos primordiais, o sonho da universalidade dos místicos. Romper os contextos sem destruí-los, e caminhar em direção do mistério da unidade trinitária de Deus – eis o caminho que prepara a recapitulação do cosmo em Cristo que é a nossa paz. “Desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme” (EG 220), é um caminho lento e árduo. Nesta perspectiva, por ser desinteressada em poder e lucro, a comunicação universal que acolhe as diferenças num diálogo produtivo, é possível, além e aquém do mundo digitalizado. Os místicos diriam: desenterrar Deus que, como Verbo, nos faz participar de sua ressurreição na vida cotidiana.

          3.2. Dimensão profética

          Por acompanhar, assumir e contestar as grandes tendências da época, a evangelização radicada na cultura do encontro se inscreve num horizonte místico em busca da unidade na diversidade, e profético. As “grandes tendências” não levam em conta os destinatários como sujeitos nem os pobres e as pessoas que vivem nas margens sociais e culturais da época. Os últimos documentos do magistério latino-americano e universal nos confirmaram nessa fé: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. […]. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino” (DAp 257).

      A comunicação com esses nossos amigos é uma meta permanente. Ela não flui por causa de barreiras estruturais e pessoais. A real comunicação aponta sempre para rupturas sistêmicas e conversão pessoal. Numa sociedade de classe, a comunicação é sistemicamente travada por grandes desigualdades sociais. Mas, mesmo imaginando estruturas que superaram as desigualdades, a comunicação está cheia de ruídos por causa de relações inautênticas de indivíduos alienados. Ruptura e conversão têm dimensões religiosas, sociais, políticas, éticas, econômicas e escatológicas.

 

 A dimensão profética opõe-se à comunicação universal digitalizada como comunicação descontextualizada e luta contra a integração aos interesses econômicos prometidos pelo mundo digitalizado que é sistêmico. Ao mesmo tempo luta pela presença micro estrutural e manutenção do calor humano nas situações existenciais da vida humana mutilada por ser precedida pelo imperativo da opção pelos pobres.

        A pastoral profética é, segundo o Documento de Aparecida, uma função de sua eclesialidade: a Igreja “é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça” (DAp 396), e está “convocada a ser `advogada da justiça e defensora dos pobres´” (DAp 395, cf. DAp 508). “Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária” (DAp 533, cf. DAp 508), assume “a atitude de compaixão e cuidado do Pai, que se manifesta na ação libertadora de Jesus” (DAp 532).


       O anúncio da Boa-Nova aos pobres e sua defesa caracterizam a dimensão pneumatológica da pastoral. O Espírito Santo, que invocamos como Paráclito, é advogado e defensor dos pobres e dos outros. “No irmão, está o prolongamento permanente da encarnação para cada um de nós” (179). Essa verdade lapidar é reforçada com frases como: “absoluta prioridade”, “dimensão constitutiva da missão da Igreja”, “expressão irrenunciável”, “brota inevitavelmente dessa natureza [missionária da Igreja] a caridade efetiva”, “compaixão que compreende, assiste e promove” (179). “O prolongamento permanente da Encarnação” (179, cf. GS 32) tem nomes propositivos: justiça, caridade, solidariedade. “A palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade” (188). As comunidades são lugares de luta pela “prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (188). Tudo isso exige de nós uma profunda “conversão pastoral” (DAp 366) para louvar a Deus na humanidade ferida. Precisamos refletir estratégias de um novo paradigma da Igreja universal em contextos, cuja meta e obstáculo a Exortação Evangelii gaudium enfatiza:

Neste tempo em que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos (EG 87).

        
  “A mística de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos” não é uma mística pré-moderna e tribal de um comunitarismo historicamente caducado, mas uma construção social que permite a convivência pacífica da humanidade em sua diversidade. A “maré um pouco caótica” foi castigada por ventos diferentes que se opõem a essa mística. O termo “comunidade” aponta para realidades sociais contextuais nem sempre intercomunicáveis. “Comunidade” pode apontar para uma comunidade na qual prevalecem códigos fechados ou abertos, para uma comunidade agrária e oral, uma comunidade científica, indígena e indigenista, pré-moderna, pré e pós-industrial. A invenção da escrita, do livro e do computador podem perpassar todas elas.

          A invenção da tipografia nos trouxe não só a Bíblia de Lutero, mas também a agenda com seu impacto sobre nosso tempo disponível. A rigor, a digitalização consome mais tempo que libera para a evangelização no interior de uma expressão da cultura do encontro. Redimensionar os imperativos universais da digitalização, que nos abrem horizontes fascinantes, significa não permitir que se tornem dono do nosso tempo e não permitir a cristalização de processos (cf. EG 223). Quem são as pessoas e os meios que contribuem para a construção de comunidades através de processos escondidos e abrem mão de resultados visíveis e imediatos sem o objetivo essencial de construir a plenitude humana? A Evangelii gaudium nos dá uma resposta com um critério enunciado por Romano Guardini: "«O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o caráter peculiar e as possibilidades da dita época»" (EG 224).

    Se a palavra “encontro” é a palavra-chave que se tornou conceito pastoral como “cultura do encontro”, então queremos saber, “como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. […] Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural (EG 239). No início dessa cultura do encontro está o encontro dos encontros com Deus-Pai e com aquela pessoa que Ele nos enviou por amor, seu filho Jesus Cristo: “A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10)” (EG 24).

       A busca e descoberta do amor de Deus no lugar do encontro faz o “assédio espiritual” desnecessário: “As maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e solidariedade entre todos. […] Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” (EG 87). A paciência de escutar, de ir ao encontro e servir é muito mais importante do que a fala normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas convicções.

   Na linguagem da geração facebook, nossas comunidades hoje são communities em redes, desafiadas pela urgência da caridade de Cristo, a velocidade de aparatos e pela lentidão do encontra face à face: “Assim como alguns quiseram um Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender e apagar à vontade (EG 88).

          No mundo globalizado, redes de fé, sem fronteiras, e comunidades que contextualizam amor e esperança, participação e presença, fraternidade e solidariedade tornaram-se desafios gigantes. Proximidade e presença, universalidade e urgência pastoral se articulam em sete registros:
- mobilidade (mística do caminho e ruptura sistêmica),
- pluralidade (diálogos com o diferente),
- relevância (para os pobres e os outros),
- leveza (física e estrutural),
- visibilidade (sinal que renuncia à totalidade sem abrir mão de sua missionariedade),
- simplicidade (de doutrinas e da vida),
- conectividade (proximidade universal e capacidade de articulação).

Com suas tensões internas, nos convidam


a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimento e suas reivindicações […]. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura (EG 88).

Um comentário:

  1. Seria uma temeridade ousar adicionar qualquer comentário a esse magnífico texto. Não há o que acrescentar à brilhante exposição do autor, desvendando a Evangelii Gaudium, com grande sensibilidade, perspicácia e inspiração!

    ResponderExcluir