Esta e outras perguntas respondeu Dom Michael Fitzgerald, núncio emérito
no Egito e ex-presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso.
Na qualidade de membro da Sociedade dos
Missionários da África e um estudioso da cultura árabe e islâmica, Fitzgerald é
a pessoa particularmente qualificada para discutir este assunto, algo que ele
fez numa palestra em 6 de março na Universidade Católica da América, organizada
pelo Instituto de Pesquisa Política e Estudos Católicos e pela ONG Africa Faith
and Justice Network.
Apesar de ter passado a maior parte de sua
vida dialogando com o Islã, Fitzgerald não nega as dificuldades existentes
neste tocante. Na citada palestra, ele começa analisando três elementos que
tornam difícil o diálogo com certas categorias dos muçulmanos.
Em primeiro lugar, “há uma grande diferença
na experiência de Jesus e de Maomé, e portanto na experiência fundante destas
duas religiões”, disse. Ambos foram profetas com uma mensagem de conversão ao
mundo. Ambos reuniram discípulos em torno de si.
“No entanto, Jesus pregou o Reino de Deus, um
reino que não era deste mundo”, explicou Fitzgerald. “A sua mensagem era
essencialmente uma mensagem religiosa que, embora estivesse projetada para ter
um efeito no comportamento das pessoas neste mundo, poderia ser vivida dentro
de qualquer ambiente ou cenário político”.
“A mensagem [de Maomé] também era
essencialmente religiosa, o reconhecimento do Deus único contra o politeísmo
prevalente, mas ela tinha uma dimensão social, que era liderar a formação de
uma nova comunidade ligada não por laços sanguíneos ou lealdade tribal, mas
pela religião: a Umma”.
A Umma era tanto uma comunidade religiosa
quanto uma comunidade política, e ela pegou nas armas para sobreviver. Maomé
foi tanto um profeta como um estadista.
O cristianismo pré-Constantino, por outro
lado, era um movimento puramente religioso que não pegou em armas para
sobreviver.
“Assim, embora o cristianismo foi, por assim
dizer, tomado e usado por entidades políticas, em primeiro lugar pelos
bizantinos e, depois, por vários monarcas e legisladores, em essência ele
permanece independente de qualquer poder político”, disse Fitzgerald. “Enquanto
que o Islã, desde o seu começo como uma comunidade separada, tem sido tanto um
grupo político quanto religioso, e poder-se-ia ficar tentado a dizer que o
esforço, a luta para defender a própria comunidade (se necessário usando a
força das armas), é um componente natural da religião”.
Há uma tendência entre os muçulmanos em olhar
de volta para o seu primeiro período, aquele dos Califas Corretamente Guiados,
como a época de glória e do verdadeiro Islã. Isto tem inspirado inúmeros
movimentos revivacionistas ao longo da história. Jihadistas contra muçulmanos
que não praticavam uma versão pura do Islã se tornou comum. A maior parte
destes movimentos eram locais e duraram pouco tempo, porém o movimento
wahhabita, começado no século XVIII, ainda está entre nós e encontra respaldo
na Arábia Saudita.
A atração do califado é o segundo item
examinado por Fitzgerald. Ele observa que o Islã se dividiu em facções sunitas
e xiitas após a morte de Maomé por causa de divergências a respeito da
sucessão.
Os xiitas acreditam que Maomé nomeou Ali, seu
primo, como o sucessor. Para os xiitas, cada imã designa o seu sucessor, o qual
deve pertencer à família do profeta. Os xiitas creem que havia 12 imãs que
seguiam Maomé e que o 12º foi ocultado e retornará no fim dos tempos para
realizar um reino de justiça.
Os sunitas acreditam que Maomé não fez
nenhuma provisão para a sucessão e, portanto, a sua sucessão seria determinada
através de eleição por membros proeminentes da comunidade.
No entanto, apesar destas divisões, o
califado durante o período de expansão islâmica e prosperidade atuou como um
ponto focal de unidade para os muçulmanos. Isto durou até meados do século X,
quando o califado começou a perder a sua importância até que Mustafa Kemal
Ataturk finalmente a aboliu em 1924.
Ainda que fosse um ideal atraente, o califado
não foi sem um fator predominante na vida do Islã e, com certeza, durante
séculos não funcionou como um poder político unificador. O pronunciamento de
Abu Bakr al-Baghdadi, de que ele é o califa, foi condenado pelas autoridades
muçulmanas. Um destacado estudioso, Yusuf al-Qaradawi, presidente da União
Internacional dos Estudiosos Muçulmanos, disse que o título de califa pode
“somente ser dado por toda a nação muçulmana”.
O último aspecto que Fitzgerald analisa é a
lei da Sharia pela qual a Umma deve se regular. Ele observa que existem quatro
fontes para a Sharia: o Corão, a Suna, ou tradição do profeta; a “qiyas”, ou
analogia; e o “ijma”, ou consenso entre os estudiosos. Estas múltiplas fontes e
a ambiguidade textual lideram o debate e as divergências sobre a Sharia de
forma que existem, pelo menos, quatro diferentes escolas de interpretação.
Assim, quando se diz que lei da Sharia será
aplicada, a questão é qual Sharia. Quem vai decidir qual tipo a ser aplicado, e
quem deve controlar a sua aplicação, certificando-se de que todas as condições
foram cumpridas antes que algum juízo seja feito?
Fitzgerald conclui: “Os jihadistas takfiri,
que proclamaram um Estado Islâmico onde a lei da Sharia será observada sob a
orientação de um califa autodesignado, não estão mantendo a tradição islâmica,
independentemente do que digam”. Ele disse acreditar que o diálogo é impossível
com tais pessoas “que estão convencidas de que detêm a verdade e que, portanto,
não precisam escutar os outros”.
Mas o diálogo com os demais muçulmanos é
possível, acrescentou. Fitzgerald apontou quatro tipos de diálogos possíveis e
citou o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso: o diálogo da vida,
o diálogo das obras, o diálogo dos intercâmbios teológicos, e o diálogo da
experiência religiosa.
O diálogo da vida, ou o daquilo que
Fitzgerald chama de uma vida harmoniosa, acontece “onde as pessoas se esforçam
por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas
alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações”, nas palavras
do Pontifício Conselho.
Cristãos e muçulmanos têm vivido, lado a
lado, por séculos na África e na Ásia, e agora os muçulmanos estão presentes,
em número crescente, na Europa e na América do Norte.
“Passos devem ser dados no sentido de
permitir que as pessoas venham a conhecer umas às outras e a criar harmonia”,
disse Fitzgerald. O aumento da violência fez isso ficar mais difícil, mas
também mais necessário.
Em segundo lugar, há o diálogo das obras,
onde os cristãos e muçulmanos trabalham juntos para encarar os problemas da
sociedade. Cristãos e muçulmanos encontraram uma causa comum no movimento
pró-vida bem como na defesa dos direitos humanos, nas reformas sociais e no
cuidado do meio ambiente. O trabalho em conjunto cria entendimento e confiança.
Em terceiro lugar, há o diálogo dos
intercâmbios teológicos onde, segundo o Pontifício Conselho, “os peritos
procuram aprofundar a compreensão das suas respectivas heranças religiosas, e
apreciar os valores espirituais uns dos outros”. Temas tais como justiça e
relações comerciais internacionais, ética dos negócios, problemas de migração,
meios de comunicação e religião, respeito pelo meio ambiente e questões de
bioética foram, todos, retomados nestes diálogos. Alguns diálogos também
discutiram tópicos puramente teológicos, como os fundamentos da santidade e da
razão, da fé e da pessoa humana.
Por fim, há o diálogo da experiência
religiosa, onde, de acordo também com o Pontifício Conselho, “as pessoas
radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas
espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e
aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto”. As comunidades religiosas como a
dos beneditinos e dos trapistas se envolveram em tais diálogos.
Fitzgerald concluiu dizendo que o diálogo
cristão-muçulmano existe e que, portanto, é possível”. Mas a situação é
desigual. “Há lugares onde existe muito pouco ou nenhum interesse em um tal
diálogo, também há outros lugares onde as relações com os muçulmanos se
tornaram uma preocupação normal para as comunidades cristãs”.
Mas, ao mesmo tempo, uma cooperação está
crescendo, e com ela uma suspeita mútua, o que torna o diálogo mais difícil. Fitzgerald não tem muita confiança em
encontros internacionais de líderes e estudiosos religiosos. É um diálogo e uma
cooperação no nível local o que faz a diferença. Disse que o diálogo local não
deve ser visto como uma brigada de incêndio para se responder às crises, mas
sim como uma estratégia de prevenção que constrói relações que vacina/inocula
as comunidades para não caírem na violência por causa de suspeitas e
mal-entendidos.
“O que implica aumentar o conhecimento mútuo,
superar preconceitos, criar confiança”, explicou. “Significa fortalecer os
laços de amizade e colaboração a tal ponto que as influências negativas que vêm
de fora possam ser trabalhadas”.
“O objetivo aqui é construir solidamente boas
relações entre as pessoas de diferentes religiões, ajudando-as a viver em paz e
harmonia”, disse Fitzgerald. Ele nota que onde os líderes muçulmanos e cristãos
bem como as comunidades têm uma história de cooperação, o conflito é menos
provável de se transformar em violência.
“É o conflito o que vira notícia, não a
ausência dele”, observou. “E, no entanto, é esta ausência de conflito o que é,
realmente, a boa nova”.
Onde o conflito ocorre, há a necessidade de
uma purificação das memórias, o que “significa escutar os diferentes relatos
sobre os mesmos eventos; significa prestar atenção nos fatos e percepções e
tentar chegar a um entendimento comum”, explicou. “Quando se analisa o passado
com honestidade, normalmente se verá que nem tudo é oito ou 80. Podem existir
erros em ambos os lados. Em todo caso, o reconhecimento dos erros cometidos,
das injustiças, atrocidades, é um passo importante em qualquer processo de
reconciliação”.
“O diálogo inter-religioso deveria levar a
uma busca comum de compreensão, a uma simpatia partilhada por aqueles que
sofrem e que passam por necessidades; deveria levar a uma sede de justiça para
todos, ao perdão pelo erro cometido, juntamente com uma prontidão para
reconhecer os próprios equívocos cometidos, sejam eles individuais ou
coletivos”, concluiu Fitzgerald. “Este parece ser o verdadeiro caminho em
direção ao diálogo cristão-muçulmano”.
Muito interessante, tanto a exposição como as conclusões de Fitzgerald, sobre o diálogo cristão-muçulmano.
ResponderExcluirA via do diálogo, embora muito difícil e incerta, vale muito a pena - e que homens e mulheres de boa vontade invistam todos esforços na construção de caminhos e entendimento, para que num futuro próximo, possam prevalecer a compreensão, o respeito e convivência harmoniosa entre essas culturas e respectivas crenças.