Memória de Abbé Pierre no centenário de seu nascimento (1912-2007)

Paulo Suess

Abbé Pierre e sua obra podem ser confundidos com a obra de Madre Teresa de Calcutá. Quando morreu em Paris, dia 22 de janeiro de 2007, Abbé Pierre foi declarado pelo cardeal Godfried Daneels, arcebispo de Bruxelas, um “gigante de misericórdia”. E, segundo a declaração de Jacques Chirac, a França inteira estava “de luto” e “tocado no coração”. “A sua morte me fez pior que o frio desta manhã”, lamentou Gilles Vasseur, um desabrigado nos arredores de Paris: “Nós, os sem abrigo, os sem nada, estamos hoje todos órfãos” (AFP). E Roger Etchegaray, ex-presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, afirmou que o fundador de Emaús “nunca se enganou no combate, declarando guerra à miséria e desejando que os primeiros a servir fossem os mais sofredores”. Após a celebração das exéquias, Abbé Pierre foi enterrado no cemitério de Esteville, próximo dos companheiros da primeira hora.
A repercussão pública entre Madre Teresa e Abbé Pierre pode ter sido semelhante. E, de fato, há algumas semelhanças na vida de ambos: saída da Ordem religiosa na qual professaram seus primeiros votos, porque essa permanência se tornaria um obstáculo para a radicalidade evangélica que se propuseram; dedicação heroica aos últimos da sociedade, mormente ao povo da rua; fundação de um grupo de seguidores e seguidoras. Mas, olhando de perto, há diferenças significativas entre Pierre e Teresa.

Abbé Pierre nasceu - assim está no seu registro de batismo - como Henri Antoine Grouès, quinto de oito filhos, no dia 5 de agosto de 1912. Estudou num colégio dos jesuítas, mas entrou, aos 19 anos, na Ordem Franciscana dos Capuchinhos, onde foi acolhido como irmão Philippe e viveu sete anos. Em várias ocasiões, Abbé Pierre confessa sua fascinação por São Francisco de Assis. Em 24 de agosto 1938, o cardeal Gerlier ordena o jovem capuchinho Henri Grouès e o jovem jesuíta Jean Daniélou sacerdotes. Na véspera de sua ordenação, o irmão Philippe se confessou com o padre Henri de Lubac (1896-1991) que lhe deu o seguinte conselho: “Amanhã, quando você está prostrado no chão da capela, faça só uma oração ao Espírito Santo. Peça a Ele, que acorde em você o anticlericalismo dos santos!” Nessas palavras, lembra Abbé Pierre mais tarde, já estava a semente de sua posterior insurgência pela causa dos pobres em nome de Deus. Em 1939, poucos meses antes de terminar seus estudos teológicos, Henri decide parar tudo e enfrenta a luta espiritual e institucional pela exclaustração com um forte impacto sobre sua saúde. Finalmente, consegue a dispensa dos seus votos e a incardinação na diocese de Grenoble.


Abbé Pierre tinha uma visão ampla dos serviços paroquiais. Seus primeiros anos de sacerdócio coincidiram com a ocupação da França pela Alemanha. Nesse período da Segunda Guerra Mundial ajudou muitas pessoas escapar da polícia secreta dos nazistas. Na resistência clandestina, falsificou passaportes e ajudou judeus e perseguidos políticos a escapar da deportação aos campos de concentração. Foi preso, em 1944, e conseguiu fugir para a Argélia, escondido num saco do correio. Desde 1945 voltou a Paris e foi eleito deputado para a Assembleia Nacional Francesa, mas, em 1951, abre mão de seu mandato em protesto contra uma lei eleitoral que considerou injusta.
Já em 1949, ainda deputado, Abbé Pierre vivia numa casa simples onde começou a caminhada de Emaús através de um encontro crucial e uma inspiração genial na sua vida. O próprio Abbé Pierre nos conta desse começo (cf. Mémoire d´um croyant, cap. 2). Foi o encontro com o jovem George Legay num momento em que este, por causa da total desestruturação de sua vida, tinha tudo preparado para suicidar-se. O Abbé escutou George, atentamente, e disse: “George, eu não posso fazer nada por ti. Tenho dívidas e meu salário de deputado está comprometido com a construção de casas para mães que vivem na rua. Antes de se matar, você poderia dar uma mão na construção dessas casas para liberá-las mais rápidamente. O rosto de George mudou e ele disse sim. Ele veio e esse trabalho deu sentido à sua vida”. 
Assim começou o movimento dos “Companheiros de Emaús”, hoje presente em quatro Continentes e mais de 40 países. As Comunidades de Emaús vivem exclusivamente do trabalho e da solidariedade em benefício dos mais pobres e lutando contra as causas da miséria. Por opção, não aceitam subsídios do Estado ou das Prefeituras, com exceção para os idosos e os doentes. Quem contribui muito com a comunidade não dispõe de mais do que aquele, que não consegue contribuir. Partilha e auto sustento são chaves das comunidades de Emaús. A Comunidade recolhe coisas velhas, usadas e não necessárias nas casas de pessoas, faz triagem das mesmas, as restaura e vende em Lojas de Solidariedade e Feiras.

Em sua coletânea de meditações “Mon Dieu... pourquoi?" (2005), Abbé Pierre assume posições próprias sobre o celibato dos padres, a ordenação de mulheres e a homossexualidade (cf. Liberation, 28/10/2005). Também se pronunciou em favor da renúncia dos papas com 75 anos. Talvez por nunca ter se enganado no combate à miséria, por ter amado e convivido com os pobres, Abbé Pierre é uma voz autorizada e autêntica para se pronunciar sobre mudanças na Igreja. No fim de sua vida admite ser pecador e ter cometido erros. Essas declarações rompem com um heroísmo falso. Neste contexto, convém mencionar o realismo do papa Bento XVI que, poucos meses antes da beatificação de João Paulo II, declarou que uma pessoa “beata” ou “santa” precisa ter vivido algumas virtudes heroicamente, mas não ter tido uma vida heroica do começo ao fim. 
Em 1963, Abbé Pierre estava a bordo de um navio que naufragou entre Argentina e Uruguai: 80 mortos. Mais tarde ele escreve sobre o acontecimento: “Depois de um primeiro susto, em que a gente pensa em suas faltas e pede perdão, eu tive só um pensamento: Que ele vem! Para mim, a morte é o encontro atrasado com um amigo. Eu gosto de repetir esta palavra-chave da Bíblia: Maranata, o que significa: Vem Senhor Jesus, vem!”. As horas de vida e a hora da morte de Abbé Pierre sempre eram horas do encontro com este Jesus que ele, heroicamente, amou. Seguiu João Crisóstomo, lembrado no Documento de Aparecida (n.354): “Querem em verdade honrar o corpo de Cristo? Não consintam que esteja nu. Não o honrem no templo com mantos de seda enquanto fora o deixam passar frio e nudez”. 

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