O "Acampamento Terra
Livre (ATL) no retrovisor
As
delegações dos povos indígenas, que acamparam três longos dias debaixo de forte
chuva e sol quente na Esplanada dos Ministérios de Brasília, arrumaram suas
mochilas, desmontaram lonas e barracas. Desde a saída de suas aldeias
discretamente monitorados pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin),
retomaram a estrada e estão voltando para suas terras que valentemente
defenderam. Há alguns anos, o Acampamento Terra Livre (ATL) faz parte da
Mobilização Nacional Indígena com ações concomitantes espalhadas por todo o
Brasil.
Antes
de vir para Brasília, as lideranças convocadas pelas suas organizações
regionais e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), percorreram
as regiões e conversaram com seus povos sobre o significado do ATL. Já
preparando futuros militantes da causa indígena, trouxeram muitos jovens que pela
primeira vez estiveram em Brasília. Ao lado desse foco pedagógico, o que
significou, politicamente, a mobilização de 1,5 mil lideranças indígenas no ATL
contra a mobilização de três bancadas do Congresso e de três Poderes constitucionais
durante 365 dias ao longo do ano?
O
leitor, politicamente instruído sobre os Três Poderes, pode perguntar: “Mas,
quem são essas Três Bancadas”? São as bancadas BBB, da Bíblia, do Boi e da Bala,
as bancadas do fundamentalismo, do agronegócio e da liberalização da compra e do
porte de armas (PL 3722/2012). Para fazer passar seus respectivos projetos
pelas votações, essas bancadas fazem alianças transversais com outros setores,
como aconteceu na votação da Redução da Maioridade Penal (PEC 171/93) e na
preparação do Projeto de Lei (PL 4330) que pretende regulamentar a Terceirização
do Trabalho.
Face
às três bancadas e aos Três Poderes, os povos indígenas vivem politicamente
encurralados em uma situação de guerra civil silenciada pela mídia e sustentada
pela classe dominante, pela força bruta de assassinatos no campo e pela
repressão “legal” que está instruindo processos que criminalizam as lideranças
indígenas e as colocam nas cadeias. A coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação
e Revisão (CCR), Deborah Duprat, fez uma leitura correta do panorama político
que vivemos hoje: “Avalio que estamos vivendo um dos piores momentos
pós-Constituição de 1988 no que diz respeito a direitos territoriais indígenas.
Isso porque, pela primeira vez, os três Poderes, por ação ou omissão, passam a
percepção de que há excesso nas demarcações de terras indígenas e de que é
preciso adotar providências no sentido de assegurar direitos de propriedade de
terceiros” (Porantim, Jan/Fev 2015,
p. 4).
Os
discursos das lideranças indígenas, suas faixas de protesto e documentos
protocolados durante o Acampamento Terra Livre (ATL 2015) mostravam os conflitos
estruturalmente conectados à hostilidade dos Três Poderes, escondidos atrás de
siglas misteriosas como PEC 215 (referente ao Poder Legislativo), Portaria 303
(referente ao Poder Executivo), anulação de “Portaria Declaratória” e “Marco
Temporal” (ambos de iniciativa do Poder Judiciário).
A
PEC 215 é a Proposta de Emenda Constitucional, que transfere do Poder Executivo
para o Legislativo, portanto, do Governo Federal para o Congresso, a atribuição
de oficializar Terras Indígenas em detrimento dos artigos 231 e 232 da
Constituição que regulamenta as demarcações de terras indígenas. Por que esta
fúria dos índios contra a PEC 215? No Congresso hospedam-se os interesses
regionais de prefeitos, grandes proprietários de terra e do agronegócio, das
mineradoras e das madeireiras que, com suas contribuições, subvencionam as
campanhas eleitorais de vereadores, deputados e senadores, e procuram impedir a
demarcação das terras indígenas.
Sabiamente,
a Constituição de 1988 resistiu contra as tentativas de regionalizar a questão
indígena, contando com a ação política mais distante da cooptação regional e,
portanto, mais isenta do Governo Federal face às reais necessidades dos povos
indígenas. Infelizmente, nesse “olhar mais distante” do Poder Executivo está
embutido um fator subjetivo e partidário deste ou daquele governante. A
presidente Dilma, que já nos seus discursos de posse do segundo mandato não
mencionou os povos indígenas com uma só palavra, está descumprindo a sua
promessa de ser presidente de todos os brasileiros. Embora a PEC 215 represente
uma iniciativa do Poder Legislativo, o trato político que foi dado à questão pelo
Poder Executivo foi o da “batata quente” em detrimento da Constituição Federal.
Para
o segundo dia do ATL foi previsto uma vigília noite a dentro diante do Supremo Tribunal
Federal (STF), fortemente cercado por policiais. Mesmo sob chuvas torrenciais,
as lideranças cantaram e dançaram num ritual com a força que teria feito os
muros de Jericó caírem.
Quais
foram as reivindicações ao STF? A 2ª Turma do Supremo anulou entre setembro e
dezembro de 2014 duas Portarias do Ministério da Justiça e um Decreto
Presidencial que reconheceram três terras indígenas legalmente aptas para a
demarcação e devolução definitiva aos índios. Os ministros do Supremo achavam o
contrário, interpretando que as terras Guyraroká (MS), do povo Guarani Kaiowa,
Porquinhos (MA), dos Canela Apanyekrá e Limão Verde (MS), dos Terena, não
seriam terras indígenas. A base legal invocada pelo STF foi o chamado “Marco
Temporal”.
O
“Marco Temporal” é um expediente jurídico introduzido por ocasião da demarcação
da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol de Roraima, juridicamente concluída
em 2013. Esse “Marco Temporal” foi assumido no decorrer dos debates anteriores
entre os Ministros do STF no julgamento da Petição 3388/RR, de 2009. Segundo o
então ministro Ayres Britto vale somente para a TI Raposa Serra do Sol, e diz o
seguinte: terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas que eles
habitavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição
Brasileira, devendo, ainda, haver efetiva relação dos índios com a terra.
“O marco temporal de ocupação” não causou maiores problemas enquanto era respeitada a intenção original do julgador de não lhe atribuir “efeito vinculante” às demais terras indígenas e enquanto vigorou o entendimento sobre “o marco da tradicionalidade da ocupação”. De acordo com a decisão do STF, “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.
Esse
acordo legal foi rompido pelas decisões da 2ª Turma do STF ao tratar o “Marco
Temporal” como precedente jurídico para outras situações e dando um caráter
altamente restritivo ao “renitente esbulho” dos povos indígenas. A Advocacia Geral
da União (AGU), braço jurídico do Poder Executivo da Presidência, que por meio
da Portaria 303/2012 estabeleceu a vinculação das já mencionadas
“Condicionantes” a todas as terras indígenas do Brasil, sincronizou os equívocos
jurídicos entre STF e AGU.
A
invocação do “Marco Temporal” como precedente e a classificação restritiva do
“esbulho” não considera suficientemente que os povos indígenas viveram até a
promulgação da Constituição de 1988 em regime de Tutela, que não lhes permitiu
reivindicar seus direitos territoriais ou travar disputas judiciais, nem voltar
às suas terras, das quais foram expulsos pelas diferentes ondas de colonização.
Na questão da demarcação das terras indígenas, o governo Dilma está entrando em
águas turvas da amnésia histórica, mostrando sintomas de um Alzheimer jurídico avançado
que trata situações de fato como situações de jure.
Paulo
Suess, 19 de abril 2015
Por essa brilhante exposição, tomamos conhecimento da falta de seriedade de Poderes Institucionais, que deveriam estar à frente da defesa dos direitos das Nações Indígenas, principalmente no que se refere aos direitos à posse e ocupação de suas terras - garantidas pela Constituição Federal de 1988.
ResponderExcluirCausa indignação que subsistam interpretações capciosas de "Marco temporal", adotado para outra finalidade e em situação diversa, avocado com intenção de confundir e privilegiar grupos poderosos, inconformados com os ditames constitucionais.
O Governo Federal e os parlamentares dignos, coerentes com os princípios da Justiça e da equidade, não podem se submeter aos interesses escusos dessas bancadas desejosas de expulsar, definitivamente, os Povos Indígenas de seus territórios, usurpados pela ganância e ambição desmedida do agronegócio! DEMARCAÇÃO JÁ!!!!!!