Nem todos os envolvidos nos processos pastorais cada vez mais acelerados têm o tempo suficiente para ler as quase 50 mil palavras da “Evangelii gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual”. A partir de 50 palavras-chave, o presente “Dicionário” procura facilitar a entrada nessa montanha gigante do documento com propostas surpreendentes, audazes e inovadoras, que o papa Francisco do fim do mundo enviou ao centro da Igreja. Dessa entrada sistematizada na montanha mágica, com o nome “A alegria do Evangelho”, o leitor vai trazer pedras preciosas para a construção de um projeto pastoral voltado para o povo.
Mulher emancipada e mística militante: 5º centenário do nascimento de Teresa d´ Ávila
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Por
ocasião do 4º centenário da reforma teresiana e da canonização de Teresa, no
Carmelo de Milão, em agosto de 1962, o então cardeal Montini, falou do segredo
do caminho contemplativo de Teresa, de sua audácia, de seu modo severo e
despojado de aparatos exteriores, de sua busca da comunhão com a fonte, com a
essência da vida, que é Deus: “É na audácia de uma forma de vida como esta que
consiste a dedicação. Dedicação quer dizer renúncia. [...] É a pérola da busca
vigilante e contemplativa de Deus”.
A
biografia de Teresa é o espelho de uma Espanha conturbada e contraditória. Em
1485, seu avô, Juan Sanchez de Toledo, descendente de Conversos, como foram
chamados judeus convertidos ao cristianismo, foi condenado à penitência pública
pela Inquisição espanhola por causa de práticas judaizantes. Na época, Alonso,
o pai de Teresa, tinha cinco anos.
Na
Espanha dos séculos XV e XVI, os direitos civis eram uma prerrogativa dos
cristãos ou dos convertidos ao cristianismo. Ao mesmo tempo, os judeus
convertidos eram suspeitos de serem conversos oportunistas que clandestinamente
praticavam sua antiga religião. Esse clima de suspeitas era o motivo que, cinco
anos depois de sua penitência pública, fez a família de Juan Sanchez migrar de
Toledo para Ávila, onde se integrou na classe de comerciantes bem sucedidos. No
decorrer dos anos, o nome Sanchez, que indicava a origem judaica, foi
substituído por um título comprado de nobreza, medidas que protegeram a família
de Teresa. Ela mesma se chamou nos primeiros decênios de sua vida: Doña Teresa
de Cepeda y Ahumada, adotando os sobrenomes da linhagem materna.
A
expulsão dos judeus dos territórios da coroa espanhola em 1492, pelos Reis
Católicos, Fernando e Isabela, mostra como naquele país eram importantes a
certidão de batismo e o certificado de nobreza. Mas a história se vingou da
Igreja católica espanhola. A lei iníqua do governo de Mendizábal, de 1835,
efeito tardio da Revolução Francesa, despojou a Igreja de suas propriedades e
todas as Ordens Monásticas foram proibidas. Os conventos carmelitas
desapareceram por completo da Espanha e só em 1875, com a restauração da
monarquia e a chegada de Alfonso XII, iniciou-se a restauração carmelitana
naquele país.
Quem
era Santa Teresa d´Àvila?
O
carmelita frei Maximiliano Herráiz distingue três etapas na vida de Teresa: a
primeira, na casa paterna, vai até os vinte anos (1515-1535), a segunda abarca
27 anos de vida religiosa carmelita, no Mosteiro da Encarnação, em Ávila. Em
sua inquietude espiritual, Teresa fez um voto de que haveria de seguir sempre o
caminho da perfeição. Numa noite do mês de setembro de 1560, Teresa d´ Ávila
decidiu reunir um grupo de freiras na sua cela e, tomando a inspiração
primitiva da Ordem do Carmo e a reforma descalça de São Pedro de Alcântara,
propôs-lhes a fundação de um mosteiro de tipo eremítico, proposta que se
realizou em 1562.
No
terceiro período, de 1562 até 1582, Teresa se encontra com João da Cruz (1567),
ele com 25 anos e ela com 52. Entre ambos nasceu uma intensa afinidade mística
e prática reformadora. Para Teresa são anos de fundações de mosteiros de monjas
e monges, de reformas (carmelitas descalços!), de conflitos e de produção literária
de textos norteadores para as suas reformas. Todos os livros de Teresa foram
escritos nessa época.
Entre
os Carmelitos da Antiga Observância e os Carmelitos Descalços surgiram
conflitos profundos. Em 1577, Teresa sofreu cárcere domiciliar em Toledo e João
da Cruz foi encarcerado pelos Carmelitas da Antiga Observância. Para apaziguar
a situação interna da Ordem, em 1593, o papa Clemente VIII concedeu total
autonomia ao ramo dos Carmelitas Descalços. Depois de sua morte, o culto à
Santa Teresa se espalhou pela Espanha durante a década de 1620. Ao lado de Santiago
Matamoros, Teresa foi declarada padroeira da Espanha.
Em
seu “Caminho de Perfeição”, de 1567, Teresa de Jesus, como também foi chamada,
apresentou às suas irmãs seu ideal da vida carmelita: “Não penseis, minhas
amigas e irmãs, que serão muitas as coisas a serem recomendadas. [...] O
primeiro é o amor de umas para com outras; o segundo, o desapego de todo
criado; o terceiro, a verdadeira humildade”. Humildade significa, segundo o
papa Francisco: vencer a autorreferencialidade e as atitudes apologéticas. E
Teresa explica: “Vede como respondeu o Senhor pela Madalena em casa do fariseu
e quando foi acusada pela própria irmã. Não vos tratará com tanto rigor como a
ele próprio, que já estava na cruz, quando permitiu que um ladrão falasse por
ele” (Caminho, XV,7).
Teresa
é uma peregrina na via sacra interna e externa. Não só os opositores de suas
reformas do Carmo, os conflitos de sua família e as contradições de seu país e
de sua época, também as fases de ateísmo espiritual, de medo do inferno e de deserto
transformaram etapas de sua vida em purgatório. No sofrimento se tornou sábia,
autocrítica e humilde. Das tempestades saiu de cabeça erguida e, segundo o
testemunho de seus contemporâneos, nunca perdeu a sua simpatia humana e seu
foco espiritual. Foram os encontros com seu amigo Jesus que transformaram seus
gritos em canção: “Nada te perturbe, nada te espante [...]”. O que pode parecer
alienante em Teresa são sinais de emancipação de uma mulher que, com sua
humildade e seu despojamento, nadou contra muitas correntes de sua época. Como
padroeira da Espanha e Doutora da Igreja começou a abalar o machismo de Santiago
(“Matamoros” que nas Américas se tornou “Mataíndios”), e das Faculdades
Teológicas. Mesmo depois de 500 anos, suas vitórias ainda estão por vir. “Santa
Teresa de Jesus, mística militante, rogai por nós!”
O diálogo com o Islã é possível?
Esta e outras perguntas respondeu Dom Michael Fitzgerald, núncio emérito
no Egito e ex-presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso.
Na qualidade de membro da Sociedade dos
Missionários da África e um estudioso da cultura árabe e islâmica, Fitzgerald é
a pessoa particularmente qualificada para discutir este assunto, algo que ele
fez numa palestra em 6 de março na Universidade Católica da América, organizada
pelo Instituto de Pesquisa Política e Estudos Católicos e pela ONG Africa Faith
and Justice Network.
Apesar de ter passado a maior parte de sua
vida dialogando com o Islã, Fitzgerald não nega as dificuldades existentes
neste tocante. Na citada palestra, ele começa analisando três elementos que
tornam difícil o diálogo com certas categorias dos muçulmanos.
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“No entanto, Jesus pregou o Reino de Deus, um
reino que não era deste mundo”, explicou Fitzgerald. “A sua mensagem era
essencialmente uma mensagem religiosa que, embora estivesse projetada para ter
um efeito no comportamento das pessoas neste mundo, poderia ser vivida dentro
de qualquer ambiente ou cenário político”.
“A mensagem [de Maomé] também era
essencialmente religiosa, o reconhecimento do Deus único contra o politeísmo
prevalente, mas ela tinha uma dimensão social, que era liderar a formação de
uma nova comunidade ligada não por laços sanguíneos ou lealdade tribal, mas
pela religião: a Umma”.
A Umma era tanto uma comunidade religiosa
quanto uma comunidade política, e ela pegou nas armas para sobreviver. Maomé
foi tanto um profeta como um estadista.
O cristianismo pré-Constantino, por outro
lado, era um movimento puramente religioso que não pegou em armas para
sobreviver.
“Assim, embora o cristianismo foi, por assim
dizer, tomado e usado por entidades políticas, em primeiro lugar pelos
bizantinos e, depois, por vários monarcas e legisladores, em essência ele
permanece independente de qualquer poder político”, disse Fitzgerald. “Enquanto
que o Islã, desde o seu começo como uma comunidade separada, tem sido tanto um
grupo político quanto religioso, e poder-se-ia ficar tentado a dizer que o
esforço, a luta para defender a própria comunidade (se necessário usando a
força das armas), é um componente natural da religião”.
Há uma tendência entre os muçulmanos em olhar
de volta para o seu primeiro período, aquele dos Califas Corretamente Guiados,
como a época de glória e do verdadeiro Islã. Isto tem inspirado inúmeros
movimentos revivacionistas ao longo da história. Jihadistas contra muçulmanos
que não praticavam uma versão pura do Islã se tornou comum. A maior parte
destes movimentos eram locais e duraram pouco tempo, porém o movimento
wahhabita, começado no século XVIII, ainda está entre nós e encontra respaldo
na Arábia Saudita.
A atração do califado é o segundo item
examinado por Fitzgerald. Ele observa que o Islã se dividiu em facções sunitas
e xiitas após a morte de Maomé por causa de divergências a respeito da
sucessão.
Os xiitas acreditam que Maomé nomeou Ali, seu
primo, como o sucessor. Para os xiitas, cada imã designa o seu sucessor, o qual
deve pertencer à família do profeta. Os xiitas creem que havia 12 imãs que
seguiam Maomé e que o 12º foi ocultado e retornará no fim dos tempos para
realizar um reino de justiça.
Os sunitas acreditam que Maomé não fez
nenhuma provisão para a sucessão e, portanto, a sua sucessão seria determinada
através de eleição por membros proeminentes da comunidade.
No entanto, apesar destas divisões, o
califado durante o período de expansão islâmica e prosperidade atuou como um
ponto focal de unidade para os muçulmanos. Isto durou até meados do século X,
quando o califado começou a perder a sua importância até que Mustafa Kemal
Ataturk finalmente a aboliu em 1924.
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O último aspecto que Fitzgerald analisa é a
lei da Sharia pela qual a Umma deve se regular. Ele observa que existem quatro
fontes para a Sharia: o Corão, a Suna, ou tradição do profeta; a “qiyas”, ou
analogia; e o “ijma”, ou consenso entre os estudiosos. Estas múltiplas fontes e
a ambiguidade textual lideram o debate e as divergências sobre a Sharia de
forma que existem, pelo menos, quatro diferentes escolas de interpretação.
Assim, quando se diz que lei da Sharia será
aplicada, a questão é qual Sharia. Quem vai decidir qual tipo a ser aplicado, e
quem deve controlar a sua aplicação, certificando-se de que todas as condições
foram cumpridas antes que algum juízo seja feito?

Mas o diálogo com os demais muçulmanos é
possível, acrescentou. Fitzgerald apontou quatro tipos de diálogos possíveis e
citou o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso: o diálogo da vida,
o diálogo das obras, o diálogo dos intercâmbios teológicos, e o diálogo da
experiência religiosa.
O diálogo da vida, ou o daquilo que
Fitzgerald chama de uma vida harmoniosa, acontece “onde as pessoas se esforçam
por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas
alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações”, nas palavras
do Pontifício Conselho.
Cristãos e muçulmanos têm vivido, lado a
lado, por séculos na África e na Ásia, e agora os muçulmanos estão presentes,
em número crescente, na Europa e na América do Norte.
“Passos devem ser dados no sentido de
permitir que as pessoas venham a conhecer umas às outras e a criar harmonia”,
disse Fitzgerald. O aumento da violência fez isso ficar mais difícil, mas
também mais necessário.
Em segundo lugar, há o diálogo das obras,
onde os cristãos e muçulmanos trabalham juntos para encarar os problemas da
sociedade. Cristãos e muçulmanos encontraram uma causa comum no movimento
pró-vida bem como na defesa dos direitos humanos, nas reformas sociais e no
cuidado do meio ambiente. O trabalho em conjunto cria entendimento e confiança.

Por fim, há o diálogo da experiência
religiosa, onde, de acordo também com o Pontifício Conselho, “as pessoas
radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas
espirituais, por exemplo, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e
aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto”. As comunidades religiosas como a
dos beneditinos e dos trapistas se envolveram em tais diálogos.
Fitzgerald concluiu dizendo que o diálogo
cristão-muçulmano existe e que, portanto, é possível”. Mas a situação é
desigual. “Há lugares onde existe muito pouco ou nenhum interesse em um tal
diálogo, também há outros lugares onde as relações com os muçulmanos se
tornaram uma preocupação normal para as comunidades cristãs”.
Mas, ao mesmo tempo, uma cooperação está
crescendo, e com ela uma suspeita mútua, o que torna o diálogo mais difícil. Fitzgerald não tem muita confiança em
encontros internacionais de líderes e estudiosos religiosos. É um diálogo e uma
cooperação no nível local o que faz a diferença. Disse que o diálogo local não
deve ser visto como uma brigada de incêndio para se responder às crises, mas
sim como uma estratégia de prevenção que constrói relações que vacina/inocula
as comunidades para não caírem na violência por causa de suspeitas e
mal-entendidos.
“O que implica aumentar o conhecimento mútuo,
superar preconceitos, criar confiança”, explicou. “Significa fortalecer os
laços de amizade e colaboração a tal ponto que as influências negativas que vêm
de fora possam ser trabalhadas”.
“O objetivo aqui é construir solidamente boas
relações entre as pessoas de diferentes religiões, ajudando-as a viver em paz e
harmonia”, disse Fitzgerald. Ele nota que onde os líderes muçulmanos e cristãos
bem como as comunidades têm uma história de cooperação, o conflito é menos
provável de se transformar em violência.
“É o conflito o que vira notícia, não a
ausência dele”, observou. “E, no entanto, é esta ausência de conflito o que é,
realmente, a boa nova”.
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“O diálogo inter-religioso deveria levar a
uma busca comum de compreensão, a uma simpatia partilhada por aqueles que
sofrem e que passam por necessidades; deveria levar a uma sede de justiça para
todos, ao perdão pelo erro cometido, juntamente com uma prontidão para
reconhecer os próprios equívocos cometidos, sejam eles individuais ou
coletivos”, concluiu Fitzgerald. “Este parece ser o verdadeiro caminho em
direção ao diálogo cristão-muçulmano”.
Rua, Governo, Oposição: Se esqueceram de mim. O capital tem nada a negociar com os povos indígenas.
Foram se ajeitando e se ajuntando aos poucos.
Entre as indumentárias e instrumentos mais importantes os vistosos cocares, o
urucum e jenipapo, o maracá, o tacape e arco e flecha rituais.
No coração um enorme sentimento de paz e
guerra. Vieram lutar pela terra, pelos seus direitos, pela vida de seu povo e
de todas as nações indígenas do Brasil. Véspera de abril. Na memória a falácia
do falso “descobrimento”. Vem do litoral do “encobrimento” para a capital do
vil poder. Vem do Monte Pascoal, tão admirado por Cabral, vem de Barra Velha,
de novas lutas pela terra, vem de Cumuruxatiba, de Prado, vem de Porto Seguro,
de Santa Cruz de Cabrália, de Coroa Vermelha e uma dezena de outras aldeias. No
Centro de Formação Vicente Cañas, a primeira parada. Início do ritual. É de
encher o coração sentir a alma dessa gente retumbar ao som do maracá, da
borduna e da flauta. É hora de fazer a esperança avançar. Hora de protestar, de
exigir os direitos.
As ruas falaram na semana que passou. Mas
falaram apenas no singular. Nenhuma referência ao Brasil plurinacional que é o
melhor sonho para um país tão desigual, corrupto e injusto. É preciso lutar por
um outro projeto de país, no qual as cores vivas e belas dos povos originários
não poderão faltar. Troca de governo é ilusão passageira. É preciso trocar o
projeto de nação, aprofundar a democracia, vencer o estreito calabouço do
autoritarismo e ditadura de uma minoria de privilegiados.
“Se negarem nossas terras haverá guerra. Não
vamos aceitar perder nossas terras. Isso é vandalismo. Fazem das audiências
públicas sessões de terrorismo. Morro lutando pelo meu povo. Estou aqui para o
que der e vier”. Essas expressões de uma
das lideranças Pataxó, firmes e contundentes, denotam a consciência política de
seus direitos, ao mesmo tempo em que refletem o fim da paciência depois de mais
de 500 anos de opressão.
Vários depoimentos falam da invasão, não há
de cinco séculos passados, mas a atual: “Estão querendo invadir a Constituição
para arrancar dela nossos direitos”. Os povos indígenas da Bahia foram os
primeiros a sofrer o impacto da chegada de uma civilização marcada pelo
massacre e genocídio para saquear as riquezas, as almas e a cultura de mais de
mil povos, com uma população aproximada de 6 milhões de pessoas. Nesse processo de extermínio mais de um
milhão de índios foi morto a cada século.
No ano 2000 os povos originários
sobreviventes marcharam para o litoral da Bahia, para, no local da invasão,
dizer não ao processo de violência e etnocídio. Foram mais de 3 mil
representantes de mais de 150 povos. Quando se dirigiam a Porto Seguro para
dizer sua palavra sobre os 500 anos de invasão, foram dura e covardemente
reprimidos para polícia.
São inúmeros os problemas que os Pataxó,
Tupinambá, Pataxó-Hã-Hã-Hãe e outros povos indígenas da Bahia enfrentam. O mais
grave, todavia, continua sendo a não demarcação e respeito dos territórios
indígenas. Será mais um momento de exigir dos poderes o reconhecimento dos
direitos e se unir aos povos indígenas do país, para dizer não à PEC 215, ao PL
1610 e às dezenas de iniciativas de rapina que tem como intuito retirar ou
reduzir os direitos indígenas conquistados na Constituição de 1988.
Egon Heck – fotos Laila Menezes;
Secretariado do Cimi – Brasília,
16 de março de 2015
Repensar Deus e a Igreja no Ano Santo da Misericórdia
A proclamação do Ano Santo da Misericórdia,
que terá início com a abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro,
coincide com o cinquentenário do encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano
II, no dia 8 de dezembro de 1965.
A abertura do Portal da Misericórdia é a reabertura
de um processo que, nos tempos pós-conciliares, foi arbitrariamente fechado através de uma volta aos tempos
de Pio XII que condenou teologias, teólogos e teólogas que lealmente se
empenharam pensar o Concílio para o mundo real e contemporâneo.
O papa Francisco veio, como na época João
XXIII, para abrir a Porta de São Pedro e para mostrar que “a Igreja deve ser o
lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados,
perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (Evangelii gaudium 114).
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Para Francisco, a Misericórdia vai além da justiça: “É por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência»” (EG 37). Na misericórdia Deus se faz pequeno como no presépio e na cruz: “Deus nunca se cansa de perdoar” (EG 3).
O Ano Santo, que se concluirá em 20 de
novembro 2016, Domingo da Festa de Cristo Rei, rosto vivo da misericórdia do
Pai, será realmente “extraordinário” se conseguir fechar a Porta Santa de São
Pedro, porta de uma das últimas Cortes da Europa, para todos que resistem à releitura
da Boa-Nova como “Evangelho da Misericórdia” (EG 188) e “revolução de ternura”
(EG 88), justiça e solidariedade.
Missão Ad gentes em contextos sem fronteiras: Desafios no mundo digitalizado
Até hoje, a Igreja com seus silêncios institucionais, não se reconciliou com a vida pública democrática.
Ela tem medo das regras dessa sociedade, que cobra transparência, autenticidade
e participação. Se nessa sociedade dominada por uma paisagem medial secular,
uma autoridade com exigências éticas severas, como a Igreja, comete deslizes, a
vontade de morder é maior que em outros casos. O carro de um membro que
pertence à uma organização com a pretensão de ser uma instituição pobre para os
pobres é diferentemente avaliadoque o Mercedes de um deputado federal ou o
dono de um conglomerado midiático.
Terceira
Parte da palestra:
3. Construção da cultura
do encontro em comunidades e redes

3.1.
Dimensão mística
A pastoral do encontro prioriza o relacionamento
igualitário entre destinatário e emissor de mensagens, porque ambos são agentes
de pastoral e sujeitos da evangelização. Levam em conta a reciprocidade e
reversibilidade entre destinatário e emissor. O sonho do número grande ou até da
totalidade dos destinatários, alimentado pelo mundo digital, é pago com a moeda
da amizade que exige proximidade:


Os pobres representam o ponto de partida, não a totalidade dos sujeitos da pastoral, que são os batizados: “Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé […] A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120). Quem experimentou “o amor de Deus que o salva”, é discípulo-missionário, capaz de proclamar: “Encontramos o Messias” (Jo 1, 41) (EG 120):
A melhor motivação para se decidir a
comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor […]. Por isso, é urgente
recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir, cada dia, que
somos depositários de um bem que humaniza, que ajuda a levar uma vida nova (EG
264).
Dois braços representam a “cultura do
encontro”: a prática no plural das comunidades e o anúncio na comunidade
universal do mundo. Na realidade pastoral ainda não assumimos as tarefas que
emergem desta situação: a vigilância ética e humanitária sobre as novas
tecnologias de comunicação, o ceticismo contra todas as ofertas gratuitas
feitas nas redes e, positivamente, o imperativo da diversificação da pastoral
entre as ramificações da comunicação. Além das questões meramente econômicas
que tratam da geração de lucros, se impõem questões político-culturais ao
debate, por exemplo, a questão entre chaves de comunicação universal, que o
mundo digital oferece, e a questão de comunicação contextual e cultural que
emerge da oralidade.
A roda da “conversão pastoral” deve
girar em torno dos dois eixos da multiplicação universal dos destinatários e
usuários, e da contextualização cultural (encarnação) da mensagem. Trata-se da interação
de dois polos: de uma contextualização universal e de uma universalidade
contextualizada. O preço que a pastoral pagaria pela mera universalização digitalizada
seria o esfriamento das relações humanas, e, pela mera contextualização, o encolhimento
numérico e o encurtamento do horizonte para níveis paroquiais fechados. Não
temos a possibilidade de escolher entre um ou outro em torno dos quais se criariam
grupos de partidários militantes e grupos opostos. Os místicos, como Nicolau de
Cusa, nos falam da coincidência dos opostos, assumida na Evangelii gaudium do Papa Francisco. É possível:

A “unidade multifacetada que gera nova
vida”, e “conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em
contraste” é, desde tempos primordiais, o sonho da universalidade dos místicos.
Romper os contextos sem destruí-los, e caminhar em direção do mistério da
unidade trinitária de Deus – eis o caminho que prepara a recapitulação do cosmo
em Cristo que é a nossa paz. “Desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia
pluriforme” (EG 220), é um caminho lento e árduo. Nesta perspectiva, por ser
desinteressada em poder e lucro, a comunicação universal que acolhe as
diferenças num diálogo produtivo, é possível, além e aquém do mundo
digitalizado. Os místicos diriam: desenterrar Deus que, como Verbo, nos faz
participar de sua ressurreição na vida cotidiana.
3.2.
Dimensão profética
Por acompanhar, assumir e contestar as
grandes tendências da época, a evangelização radicada na cultura do encontro se
inscreve num horizonte místico em busca da unidade na diversidade, e profético.
As “grandes tendências” não levam em conta os destinatários como sujeitos nem
os pobres e as pessoas que vivem nas margens sociais e culturais da época. Os
últimos documentos do magistério latino-americano e universal nos confirmaram
nessa fé: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão
constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. […]. A mesma união a Jesus Cristo é a
que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino” (DAp 257).
A comunicação com esses nossos amigos
é uma meta permanente. Ela não flui por causa de barreiras estruturais e
pessoais. A real comunicação aponta sempre para rupturas sistêmicas e conversão
pessoal. Numa sociedade de classe, a comunicação é sistemicamente travada por
grandes desigualdades sociais. Mas, mesmo imaginando estruturas que superaram
as desigualdades, a comunicação está cheia de ruídos por causa de relações
inautênticas de indivíduos alienados. Ruptura e conversão têm dimensões
religiosas, sociais, políticas, éticas, econômicas e escatológicas.
A dimensão profética opõe-se à comunicação universal digitalizada como comunicação descontextualizada e luta contra a integração aos interesses econômicos prometidos pelo mundo digitalizado que é sistêmico. Ao mesmo tempo luta pela presença micro estrutural e manutenção do calor humano nas situações existenciais da vida humana mutilada por ser precedida pelo imperativo da opção pelos pobres.
A pastoral profética é, segundo o
Documento de Aparecida, uma função de sua eclesialidade: a Igreja “é chamada a
ser sacramento de amor, solidariedade e justiça” (DAp 396), e está “convocada a
ser `advogada da justiça e defensora dos pobres´” (DAp 395, cf. DAp 508). “Em
sua missão de advogada da justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária” (DAp
533, cf. DAp 508), assume “a atitude de compaixão e cuidado do Pai, que se
manifesta na ação libertadora de Jesus” (DAp 532).
O anúncio da Boa-Nova aos pobres e sua defesa caracterizam a dimensão pneumatológica da pastoral. O Espírito Santo, que invocamos como Paráclito, é advogado e defensor dos pobres e dos outros. “No irmão, está o prolongamento permanente da encarnação para cada um de nós” (179). Essa verdade lapidar é reforçada com frases como: “absoluta prioridade”, “dimensão constitutiva da missão da Igreja”, “expressão irrenunciável”, “brota inevitavelmente dessa natureza [missionária da Igreja] a caridade efetiva”, “compaixão que compreende, assiste e promove” (179). “O prolongamento permanente da Encarnação” (179, cf. GS 32) tem nomes propositivos: justiça, caridade, solidariedade. “A palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade” (188). As comunidades são lugares de luta pela “prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (188). Tudo isso exige de nós uma profunda “conversão pastoral” (DAp 366) para louvar a Deus na humanidade ferida. Precisamos refletir estratégias de um novo paradigma da Igreja universal em contextos, cuja meta e obstáculo a Exortação Evangelii gaudium enfatiza:
Neste tempo em que as redes e demais
instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o
desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos,
encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica
que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa
caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as maiores possibilidades
de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro e
solidariedade entre todos (EG 87).
“A mística de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos” não é uma mística pré-moderna e tribal de um comunitarismo historicamente caducado, mas uma construção social que permite a convivência pacífica da humanidade em sua diversidade. A “maré um pouco caótica” foi castigada por ventos diferentes que se opõem a essa mística. O termo “comunidade” aponta para realidades sociais contextuais nem sempre intercomunicáveis. “Comunidade” pode apontar para uma comunidade na qual prevalecem códigos fechados ou abertos, para uma comunidade agrária e oral, uma comunidade científica, indígena e indigenista, pré-moderna, pré e pós-industrial. A invenção da escrita, do livro e do computador podem perpassar todas elas.

Se a palavra “encontro” é a
palavra-chave que se tornou conceito pastoral como “cultura do encontro”, então
queremos saber, “como projetar, numa cultura que privilegie o diálogo como
forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a separar da
preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem exclusões. […]
Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural (EG
239). No início dessa cultura do encontro está o encontro dos encontros com
Deus-Pai e com aquela pessoa que Ele nos enviou por amor, seu filho Jesus
Cristo: “A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a
no amor (cf. 1Jo 4,10)” (EG 24).
A busca e descoberta do amor de Deus no
lugar do encontro faz o “assédio espiritual” desnecessário: “As maiores
possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de encontro
e solidariedade entre todos. […] Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo
da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” (EG
87). A paciência de escutar, de ir ao encontro e servir é muito mais importante
do que a fala normativa e imperativa daquele que quer que o outro assuma suas
convicções.
Na linguagem da geração facebook, nossas
comunidades hoje são communities em
redes, desafiadas pela urgência da caridade de Cristo, a velocidade de aparatos
e pela lentidão do encontra face à face: “Assim como alguns quiseram um Cristo
puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações
interpessoais mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas
que se podem acender e apagar à vontade (EG 88).

- mobilidade (mística do caminho e ruptura
sistêmica),
- pluralidade (diálogos com o diferente),
- relevância (para os pobres e os outros),
- leveza (física e estrutural),
- visibilidade (sinal que renuncia à totalidade
sem abrir mão de sua missionariedade),
- simplicidade (de doutrinas e da vida),
- conectividade (proximidade universal e
capacidade de articulação).
Com suas
tensões internas, nos convidam
a abraçar o risco do encontro com o
rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu sofrimento e
suas reivindicações […]. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é
inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da
reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus
convidou-nos à revolução da ternura (EG 88).
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