Por: Patricia Fachin e Luciano Gallas
“O comício do dia 13-03-1964 foi o ponto do início e do fim
do governo João Goulart”, avalia o filho do ex-presidente, ao relembrar o
Comício realizado na Praça da República, em frente à Central do Brasil, no Rio
de Janeiro, há 50 anos, dias antes da deflagração do golpe militar no país.
Cerca de 150 mil pessoas estiveram presentes para ouvir as propostas da chamada
Reforma de Bases do então presidente João Goulart.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que o comício
realizado em 13-03-1964 na Praça da República, em frente à Central do Brasil, é
relevante para entendermos o golpe civil-militar de 1964? Qual o significado
histórico e político desse comício?
João Vicente Goulart – O comício do
dia 13 foi uma decisão política do governo João Goulart para propor as Reformas de Base, que
consistia num programa de reformas para, sem dúvida alguma, modificar as
estruturas sociais e econômicas do país. Esse seria o primeiro de uma série de
comícios a serem realizados ao longo de sua gestão.
O governo João Goulart se
caracterizou por ter a maior agenda de propostas que esse país já teve até hoje
na história republicana. As reformas propostas pelo governo Jango queriam
libertar a economia brasileira da dependência externa, e isso, evidentemente,
feria os privilégios das elites brasileiras que existem na nossa sociedade
desde o período monárquico. As regalias que ainda hoje detectamos em todos os
setores e instituições da sociedade brasileira, tanto na área jurídica quanto
na área econômica, seriam eliminadas por meio das Reformas de Base.
Com o comício do dia 13, Jango
queria, junto e ao lado do povo, fazer as reformas, porque alguns setores
resistiam a isso, e havia, portanto, a necessidade de fazer uma mudança
constitucional. Mas o Congresso Nacional, à época, já estava profundamente
dividido. Parte das elites, pensando nas eleições de 1965, não queria aprovar
as mudanças constitucionais necessárias para implantar as reformas. Jango,
então, parte junto e ao lado do povo, como ele diz no comício, “na praça que é
do povo”, para iniciar as reformas e pressionar o Congresso Nacional a aprovar
as mudanças constitucionais necessárias.
Assim, o comício do dia 13 foi o
ponto do início e do fim do governo João Goulart, porque as elites já vinham se
organizando no país, através da “compra” das redações de pequenos jornais,
produzindo filmes anticomunistas, dizendo que Jango tinha relação com eles.
Jango nunca foi comunista, mas se criou uma ideia de que os comunistas iam
ocupar o país, quando, na verdade, quem estava conspirando contra a pátria e a
Constituição eram os militares e a elite arraigada na nossa sociedade. Esse é o
ponto principal do comício do dia 13. É o maior comício que se fez em prol das
mudanças sociais neste país.
IHU On-Line – Qual foi a repercussão
do discurso realizado no comício à época? Esse comício foi fundamental para a
deflagração do golpe?
João Vicente Goulart – O golpe já
vinha sendo orquestrado desde 1954. Os militares não deram o golpe contra o
presidente Getúlio Vargas , porque, com o suicídio, ele conseguiu manter a
democracia no nosso país por mais dez anos. O golpe vinha sendo orquestrado
contra o trabalhismo. Quando Jango, como Ministro do Trabalho do governo
Getúlio Vargas, aumentou o salário mínimo em 100%, teve de pedir sua saída de
forma irredutível, porque ele sentiu que, se não saísse do ministério, o
manifesto dos coronéis, que depois vieram a ser os generais de 1964, derrubaria
o presidente Vargas. Mas, por meio do trabalhismo, Vargas conseguiu aumentar o
salário mínimo. Posteriormente, Jango, em seu governo, já havia demonstrado que
não tinha se afastado dos trabalhadores brasileiros. Quando ele aprovou o 13º
salário, o jornal O Globo disse que seria o fim da economia brasileira, numa
manchete em primeira página. Isso demonstra que o golpe já vinha sendo
planejado contra o trabalhismo e contra as obtenções das lutas trabalhistas e
sociais no país.
O comício se deu no momento
político da Guerra Fria , quando Jango decidiu partir junto com o povo. E os
militares, que hoje chamam de subversivos os que lutaram pela pátria — como
vários documentos demonstram —, foram os verdadeiros subversivos, pois
subverteram a Constituição brasileira e deram o golpe, derrubando um governo
legítimo. O comício foi um dos itens dentro dessa programação. Inclusive já
existem declarações de que o segundo comício das reformas seria realizado em 21
de abril, em Belo Horizonte — essa informação está no livro de José Maria
Rabelo, lançado recentemente —, e hoje se sabe que também estava programado o assassinato
de todos aqueles que estariam no palanque nesse dia. Havia uma programação de
vários comícios em todo o país, para mostrar ao povo brasileiro qual era o teor
das Reformas de Base, para que elas não fossem boicotadas pelo Congresso
Nacional. Nesse sentido, o comício foi mais um dos fatores que acelerou a queda
do governo João Goulart.
IHU On-Line – Quais eram e o que
significavam as Reformas de Base anunciadas por Jango? Qual o objetivo dele com
essas reformas? Quais eram as mais urgentes?
João Vicente Goulart – As
principais reformas são institucionais, comerciais e políticas, as quais são
necessárias até hoje. Este país teve um atraso de 21 anos por conta da
ditadura: fecharam o Congresso Nacional, perseguiram homens, lutadores que
batalharam pela liberdade. Jango, naquele momento, queria reformar as
estruturas sociais do país: fazer as reformas agrária, tributária, urbana e
educacional, a lei de remessas de lucros, a encampação das refinarias e das
riquezas do subsolo nacional, ou seja, todas as reformas que mexeriam nas
estruturas do país.
Reforma capitalista
A reforma agrária, um dos grandes
pontos de embasamento da nova estrutura econômica brasileira à época, queria
dar dez milhões de novos títulos de propriedades rurais, e isso desenvolveria
uma economia de dez milhões de tratores, dez milhões de novas geladeiras,
fogões, etc. Jango queria dar um título de propriedade a dez milhões de novos
proprietários. Qual é o marxismo de tudo
isso? Não existe marxismo nisso. Trata-se de uma reforma capitalista.
Mas as elites não queriam perder
seus privilégios e não queriam uma reforma bancária que melhor distribuísse o
crédito. Ainda hoje a reforma bancária é necessária. Os três maiores bancos do
nosso país tiveram, de 2007 a 2012, lucros líquidos de 56 bilhões de reais e
sem a obrigação de financiar um centavo para a agricultura familiar, para a
habitação popular, para a educação. Tudo isso fica por conta do Tesouro
Nacional. Então, as Reformas de Base do governo João Goulart estão atualíssimas.
Na edição de domingo do jornal O
Globo, na área de economia, estava estampada a remessa de lucros que as Teles,
privatizadas criminalmente, enviaram para suas matrizes. Enquanto aqui ficamos
falando com uma gravação telefônica e não conseguimos falar com ninguém para
fazer uma reclamação, as Teles remeteram para as suas matrizes, em quatro anos,
quase 40 bilhões de reais. A reforma educacional, quando Jango assinou a lei de
diretrizes orçamentárias, destinava 12% do investimento previsto da nação para
a educação. Nunca neste país foi proposto algo parecido.[...]
Não adianta mudarmos o pensamento,
se não mudarmos a estrutura. Não adianta colocar no comando um governo de
“esquerda” ou de “direita”, se não houver mudanças na estrutura econômica,
social e financeira do país.
IHU On-Line - Como as Reformas de
Base foram recebidas no Congresso Nacional? Algumas das medidas chegaram a ser
implementadas? Quais?
João Vicente Goulart – Jango
assinou a lei de remessas de lucros, que estava entre as medidas que poderia
assinar como presidente da República; mas outras, não, como a lei da reforma
agrária que, de acordo com a Constituição de 1946, precisava que as áreas
desapropriadas fossem pagas em dinheiro vivo e à vista. Ele queria pagar em
títulos públicos, mas naquela época isso não era possível. Tanto que na
mensagem que enviou ao Congresso Nacional em 20 de março de 64, perguntou quais
mudanças constitucionais eram necessárias para implementar as reformas.
IHU On-Line - O então governador do
Rio Grande do Sul, Leonel Brizola , acompanhava o presidente João Goulart no
ato político. O que levou Brizola a participar do comício?
João Vicente Goulart – Não foi só
Brizola que o acompanhou. Estiveram presentes todos os líderes de esquerda que
acompanhavam as reformas, como Darcy Ribeiro , que era chefe da Casa Civil, o
sindicalismo, os partidos de esquerda, como o PTB. A UDN e o PSD não
participaram, porque já eram partidos pró-golpe. [...]
IHU On-Line - A rebelião de
marinheiros ocorrida no Rio de Janeiro no dia 25-03-1964, a qual reivindicava o
direito de associação, melhores refeições nos quartéis e navios e alteração do
regulamento disciplinar da Marinha, demonstra uma cisão do meio militar entre
aqueles que apoiavam o presidente João Goulart e grupos conservadores
contrários às mudanças?
João Vicente Goulart – O problema
militar no Brasil foi provocado. Temos de ver que existiam agentes da CIA
infiltrados dentro do movimento dos marinheiros, como o cabo Anselmo (José
Anselmo dos Santos ). Temos de saber que existia um movimento dos cabos e dos
marinheiros que era legítimo, mas outros eram financiados pelas ações
acobertadas do departamento do Estado. Não tivemos, no Brasil, apenas um golpe
dado pelos militares brasileiros. Eles foram financiados, como disse o
embaixador Abraham Lincoln Gordon em
2002, quando veio lançar, no nosso território, a sua autobiografia, tendo sido
usados cinco milhões de dólares de verbas secretas da CIA para “comprar”
militares e políticos brasileiros. Ou seja, essa declaração demonstra o
intervencionismo calhorda dos EUA na Constituição de outros países — e eles
continuam fazendo isso.
Então, após um ano e alguns meses
de governo presidencialista, e da produção de vídeos contra o governo, é
evidente que havia infiltrações no meio militar e civil, e mentiras que foram
escondidas. Recentemente foi publicada uma pesquisa do Ibope — que estava
“dormindo” em uma universidade paulista — informando que 30 dias antes do golpe
havia sido feita uma pesquisa que demonstrava que o presidente Jango tinha 89%
de aprovação da opinião pública. Se tivesse uma eleição, ele ganharia. Então,
foi tudo uma farsa e uma mentira da grande mídia. Como ainda se faz hoje. A
mídia brasileira é dividida. Sete famílias controlam 90% da mídia brasileira.
Trata-se de um subgoverno dentro do governo.[...]
IHU On-Line – Como avalia as
políticas públicas que vêm sendo implementadas no país ao longo dos anos, sem
optar por reformas estruturais, como previa o ex-presidente João Goulart?
João Vicente Goulart – O processo
da ditadura foi desastroso. Aquela política de vamos primeiro fazer o bolo
crescer para depois dividir, foi uma política criminosa de achatamento
salarial, baseada em um desenvolvimento fictício, porque foi um desenvolvimento
de 1969 a 73, feito em cima de empréstimos internacionais. Quando Jango caiu, o
país devia 980 milhões de dólares e, com mais alguns empréstimos, chegaria ao
fim do ano com um bilhão e cem milhões de dólares. Quando a ditadura entregou o
país novamente aos civis, em 1989, o Brasil devia 150 bilhões de dólares.
Então, o desenvolvimento foi “o resto a pagar” que a sociedade brasileira teve
de dar aos fundos internacionais. Isso atrasou o país.
Temos tido, nos últimos 12 anos, um
avanço na distribuição de renda, na incorporação de novos setores da sociedade
brasileira que estavam na camada mais baixa do orçamento nacional. Obviamente,
falta muita coisa a fazer para dar oportunidade idêntica a todos os
brasileiros. Acho que se fez muito; temos caminhado bastante nesse sentido de
integralização, de oferecer bolsas de estudos. O sistema de cotas à
universidade tem trazido camadas da população que antes não frequentavam esse
espaço. Apesar disso, a reforma do Estado brasileiro se faz tão necessária
quanto há 50 anos. É dever da academia pensar no que foi proposto e em como
sairemos de alguns gargalos, como a reforma da previdência, que é uma necessidade
neste país. A população está cada vez vivendo mais, e vai chegar um momento em
que o fundo previdenciário não atenderá a todos. Então, temos de pensar um
conjunto de reformas para o país avançar, porque senão vamos, lamentavelmente,
independente de governo de “direita” ou de “esquerda”, atingir um gargalo
profundo de estancamento do desenvolvimento.
São necessárias muitas entrevistas esclarecedoras como essa, para que a população. especialmente os jovens, possam avaliar, com isenção os períodos recentes da História de nosso país.
ResponderExcluirComo a mídia, com raríssimas exceções, apresenta as interpretações das elites comprometidas com o golpe que mergulhou o país no profundo obscurantismo ocasionado pela ditadura militar, infelizmente, temos visto e ouvido manifestações de pessoas que desconhecem o quanto foi nefasto, para o país e os brasileiros, o regime ditatorial.
O povo precisa aprender a distinguir "Democracia" de regimes discricionários, para dar valor à Liberdade.