O Papa da volta à grande disciplina


de Leonardo Boff
(Jornal do Brasil)

O Pontificado de João Paulo II foi longo e complexo. Só lhe faremos justiça se o inserirmos dentro de um grande arco de questões que vinham ocupando a Igreja há muito tempo. Só assim ganharemos altura para ver seu real significado. Procuraremos ser o mais objetivo possível, mas não indiferente.

Qual a característica fundamental deste Papado? É a restauração e a volta à grande disciplina. Ele não se caracteriza por uma reforma, mas por uma contra-reforma. Ele representa a tentativa de sustar um “aggiornamento” (processo de modernização) que irrompera na Igreja a partir dos anos 60 e que estava tomando conta de toda a cristandadade. João Paulo II, a pretexto de salvaguardar a identidade católica, deu uma freada vigorosa neste processo.

1. Acerto de contas com a Reforma e a modernidade

Com isso retardou um acerto de contas que a Igreja vinha fazendo com referência a duas graves questões que a martirizavam há quatro séculos.
A primeira delas está ligada ao surgimento de outras Igrejas como consequência da Reforma Protestante do século XVI. Fraturou-se a unidade da Igreja romano-católica. Ela teve que tolerar outras igrejas, embora as interpretasse como cismáticas e heréticas.
A segunda grande questão se deriva da modernidade iluminista com o surgimento da autonomia da razão, da tecnociência, das liberdades civis e da democracia. Esta nova cultura colocava em xeque a revelação da qual a Igreja se sente portadora exclusiva e denuncia a forma como a Igreja se organiza institucionalmente como uma monarquia absolutista espiritual em contradição com a democracia e a vigência dos direitos humanos.
Contra as igrejas evangélicas, a estratégia do Vaticano era a sua reconversão para que se voltasse à unidade eclesiástica antiga sob uma única cabeça, o Papa.
Contra a sociedade moderna, a relação era de crítica e condenação de seu projeto emancipatório e secularizador, visando refazer a unidade cultural sob a égide de valores morais cristãos.
As duas estratégias redundaram em fracasso. As Igrejas cresceram e se firmaram em todos os Continentes. A sociedade moderna com suas liberdades e com sua ciência e técnica se tornou o paradigma para as sociedades no mundo inteiro. A Igreja romano-católica se viu transformada num bastião de conservadorismo religioso e de autoritarismo político.
Foi obra do bom senso e da ousadia de um Papa, de João XXIII, a convocação de um Concílio Ecumênico para enfrentar estas duas questões não resolvidas.
Efetivamente, o Concílio Vaticano II (1962-1965) assumiu como lema: não mais o anátema, mas a compreensão; não mais condenação mas diálogo.
Face às Igrejas inaugurou o diálogo ecumênico que pressupõe a aceitação da existência de mais Igrejas.
Face ao mundo moderno houve uma verdadeira reconciliação com a esfera do trabalho, da ciência, da técnica, das liberdades e da tolerância religiosa. Reconheceu a legítima autonomia das realidades terrestres. Elas são boas não porque recebem a benção da Igreja, mas porque são boas em si mesmas, como expressão da criação boa de Deus. A Igreja define o seu lugar dentro do mundo moderno, como sinal e instrumento da herança de Cristo, aprendendo deste mundo e colaborando com ele na dignificação de todos os âmbitos da vida.
Ela mesma se redefine primeiramente como Povo de Deus em marcha e só depois como sociedade hierarquicamente organizada.
Ocorreu, portanto, um acerto de contas altamente positivo. Ao invés de continuar uma ilha errática de um mundo definitivamente passado, a Igreja se fazia solidária com as buscas e as angústias do homem contemporâneo.

2. O acerto de conta com os pobres

Mas faltava ainda um terceiro acerto de contas: com os pobres e sofredores que são as grandes maiorias da humanidade. Foi mérito da Igreja latino-americana lembrar que não existe apenas um mundo moderno desenvolvido mas também um submundo subdesenvolvido. Ela suscitou a pergunta incômoda: como anunciar a Deus como Pai num mundo de miseráveis? Só faz sentido anunciar a Deus como Pai caso tirarmos os pobres da miséria, portanto, se transformarmos esta realidade. Os sujeitos desta transformação serão os próprios pobres. Ora, na América Latina os pobres são simultaneamente cristãos. A inteligência política sugere transformar o capital espiritual e ético dos cristãos pobres numa força de mobilização e mudança social.
Foi o que fizeram os setores mais dinâmicos da Igreja latino-americana, animados por alguns profetas como Dom Helder Câmara. A consigna era: fazer uma opção da Igreja pelos pobres contra a pobreza. Para viabilizar esta opção se criaram as comunidades eclesiais de base (só no Brasil há cerca de cem mil), os milhares de círculos bíblicos e as pastorais sociais, por terra, por teto, por saúde, em favor dos indígenas, dos negros, das mulheres marginalizadas e assim por diante. Dai nasceu a Igreja da libertação e a teologia que a acompanha, a teologia da libertação.
Tal viragem fez com que muitos cristãos entrassem nos movimentos sociais libertários, até em frente armadas, e que numerosos bispos e até cardeais assumissem papel expressivo no combate às ditaduras militares latino-americanos e na defesa dos direitos humanos, entendidos principalmente como direitos dos pobres.
João Paulo II foi eleito Papa quando estava em curso esse vigoroso processo, chamado por nós de eclesiogênese, quer dizer, a gênese de um novo tipo de Igreja popular, pobre, profética e libertadora.

3. O projeto papal da restauração

Como se situou o Pontificado de João Paulo II em face destes cenários de Igreja?
Ele se situou, logo no início, na contracorrente destas tendências que eram dominantes. Para esta postura dois fatores foram, seguramente, determinantes: sua origem polonesa e os círculos da Cúria Romana, marginalizados, mas não derrotados pelo Concílio Vaticano II.

João Paulo II é polonês. Em sua vida conheceu apenas regimes totalitários: o nazismo e o stalinismo. Provém de uma Igreja perseguida que fizera da fé maciça dos fiéis uma força de resistência e de libertação, tanto mais eficaz quanto mais for ligada à tradição e se mantiver coesa internamente. Esta estratégia, legítima na Polônia, não permitia ao Papa avaliar adequadamente as discussões internas da Igreja universal em processo de “aggiornamento” e diálogo com a cultura moderna, caracterizada pela secularização, pelo pluralismo, pelo indiferentismo e pelo relativismo. Segundo sua leitura, condicionada pelo seu lugar social polonês, tal contato poderia colocar em risco a identidade da Igreja. Dai seu propósito de reafirmar fortemente a identidade católica.
Em Roma encontrou a burocracia vaticana, por sua natureza conservadora, que pensava exatamente da mesma forma. Estabeleceu-se um bloco histórico poderoso Papa-Cúria com o propósito de impor a restauração da identidade e da antiga disciplina.



Naturalmente, o Papa buscou colaboradores que dessem sustentação a esta linha. O principal deles foi o Card. Joseph Ratzinger, um teólogo alemão brilhante, feito logo Cardeal e levado a Roma para zelar pela fé e homogeneizar a teologia oficial para ser referência para toda a Igreja.
A estratégia não foi opor-se frontalmente ao Concílio Vaticano II, o que agravaria a crise na Igreja, mas de lê-lo na perspectiva do Concílio Vaticano I (1870). Este Concílio é todo centrado na figura do Papa, feito infalível e dotado de poderes absolutos que, no fundo, só valeriam para Deus.
Bastou este código Wojtyla/Ratzinger para redefinir todo o percurso da Igreja, desde a sua eleição em 1978 até os dias atuais.
Iniciou-se um processo de restauração daquela ordem construída sobre um modelo de Igreja piramidal, em cujo topo, solitário e absoluto, se encontra o Papa, depois os bispos, os padres, os religiosos e, lá em baixo, os leigos. Tudo gira ao redor da concepção de centro: o Papa, Roma, a Igreja hierárquica, o Ocidente cristão. Não raro, confunde-se o mundo com Roma e Roma com a Polônia, entendida como referência de fidelidade à ortodoxia tradicional.
O carisma pessoal do Papa operacionalizou à maravilha deste projeto. Ele é indiscutivelmente uma figura carismática, com inegável irradiação, um super-star com habilidade de dramatização midiática, sabendo escolher as palavras de efeito e os gestos de impacto.
Suas andanças incansáveis pelo mundo criaram a impressão de que ele é o único e verdadeiro bispo da Igreja, feita a sua única paróquia e diocese. Todos os bispos, perto dele, ou ficam pequenos ou desaparecem. Um fiel pode não saber o nome de seu pároco ou de seu bispo. Mas sabe o nome do Papa.
Para levar avante seu projeto de restauração indentitária se muniu dos instrumentos adequados. Reescreveu o direito canônico e com isso enquadrou toda a vida da Igreja (as comunidades eclesiais de base não entram a não ser como “pias associações”). Fez publicar o Catecismo Universal da Igreja Católica e com isso oficializou o pensamento único dentro da Igreja. Com sucessivas instruções deu por terminada a fase criativa na liturgia que se encarnava nas várias culturas (a proibição da missa dos quilombos (negros) e a da terra-sem-males (índios) e que agora deve se ater ao que está oficialmente estabelecido dentro do rigor do cânon romano. Subtraiu o poder decisório do Sínodo dos Bispos, submetido totalmente ao poder papal. Limitou o poder das Conferências Continentais de Bispos e das conferências nacionais episcopais (algumas foram literalmente humilhadas como a da Holanda e da Austria) e das conferências de religiosos a nível nacional e internacional, marginalizou os leigos em seu poder de participação decisória e negou a plena cidadania eclesial às mulheres, relegadas a funções meramente marginais, mas sempre longe do altar e do púlpito.
Fechou questões candentes, proibidas de serem discutidas em público como o celibato dos padres, o acesso das mulheres ao sacerdócio, as questões de moral familiar, o uso de preservativos, a questão dos homossexuais. Em quase todas as questões discutidas da biologia e da genética que roçam temas morais, a posição oficialista do Vaticano é negativa, fechada, quando não reacionária, em nome da defesa da vida e da moral.

4. Controle e punição a teólogos

Houve uma vigilância estrita sobre a produção do pensamento teológico. Mais de 140 teólogos, dos mais capacitados e criadores, foram ou interrogados nas instâncias doutrinárias do Vaticano, ou punidos, ou depostos de suas cátedras, ou silenciados e até excomungados. Aqui a repressão ganhou, em alguns momentos, caráter de crueldade. O grande e muito estimado teólogo moralista Bernard Häring, velhinho e extremamente doente, foi levado a julgamento e a longos interrogatórios nas salas da ex-Inquisição. Seu testemunho é avassalador: os interrogatórios que padeceu por parte dos militares nazistas não foram tão severos e duros como aqueles sob o Card. Joseph Ratzinger. Este Papa usou e abusou do cajado, algumas vezes contra as ovelhas ao invés de contra os lobos.
No afã de criar certezas num mundo de incertezas, João Paulo II pôs a funcionar uma verdadeira máquina de fazer discursos, de escrever instruções, de lançar cartas apostólicas e de produzir encíclicas, superando qualquer capacidade de um simples fiel poder ler e assimilar. Proclamou mais de 1300 beatos e canonizou mais de 500 santos, um verdadeiro forno de ícones, com o mesmo propósito de criar referências seguras para os fiéis. Algumas figuras são polêmicas e sob alguns aspectos francamente escandalosas como a canonização do Papa Pio IX, um dos mais reacionários e pessoalmente destemperados da história do Papado e a figura do fundador da Opus Dei, Escrivá de Balaguer, ligado ao que há de mais dúbio e menos evangélico no poder político e econômico. Mas ambos reforçavam poderosamente o papado e a instituição eclesiástica, coisa que mais conta neste modelo centralizador de Igreja.
João Paulo II alimentou uma desconfiança fundamental para com o mundo moderno. Faltava-lhe uma verdadeira teologia da secularização, no sentido da legítima autonomia das realidades da política e da cultura.
Juntamente com seu principal assessor, o Card. Joseph Ratzinger, era caudatário da visão agostiniana de história, segundo a qual a história que realmente conta é somente aquela que passa pela mediação da Igreja, portadora da salvação sobrenatural. Aquela que passa pelas mediações do empenho humano e da história não alcança altura divina e se faz irremediavelmente refém da situação decadente da condição humana e por isso é insuficiente diante de Deus.
Em nome deste agostinianismo político mostrou uma fundamental incompreensão da teologia da libertação latino-americana. Esta afirma que a libertação é feita pelos próprios pobres. A Igreja comparece apenas como aliada deles reforçando e reconhecendo a legitimidade de suas lutas. Para o Card. Ratzinger esta libertação é puramente humana e por isso sem relevância sobrenatural.

5. Visão curta e simplista da Teologia da Libertação

Importa ressaltar que o Papa teve uma visão curta e simplista deste tipo de teologia. Leu-a na ótica de seus detratores. E hoje sabemos, a partir das informações que a CIA lhe passava, especialmente, sobre sua importância na América Central. Interpretou-a como um cavalo de Troia do marxismo que ele se sentia na obrigação de denunciar, pois tinha experiência dele em sua pátria. Acolheu a ideia errônea de que o perigo da América Latina seria o marxismo. Quando o perigo é e sempre foi o capitalismo selvagem e colonialista com suas elites antipopulares e retrógradas.
O Papa viu somente a missão religiosa da Igreja e não também sua missão social, ao lado dos pobres em sua busca de justiça. Se tivesse dito: “vamos apoiar os pobres e engajar a Igreja nas mudanças, a partir daquilo que é nosso, do evangelho e da tradição profética”, outro teria sido o destino político na América Latina. Ele nos fez perder uma chance histórica única.

Lamentavelmente cercou-se de eclesiásticos latino-americanos levados a Roma, em sua grande maioria conservadores, carreiristas, intelectualmente medíocres e de um papismo infantil e adulador. De lá organizaram a restauração conservadora em todo o Continente. Isso se operou mediante a transferência de bispos proféticos para dioceses distantes, a mediocrização do episcopado com a nomeação de bispos, distanciados da vida do povo, o fechamento de institutos de teologia e a punição de teólogos. O dedo em riste do Papa contra o poeta e profeta Ernesto Cardenal da Nicaragua nunca será esquecido. Ele estava humildemente de joelhos e o Papa em pé como um mestre escola corregedor. Só faltava a vara para termos a cena completa.
Para o cristianismo da América Latina a política vaticana sob o Pontificado de João Paulo II foi um retrocesso e na perspectiva da libertação dos pobres um flagelo. A muito custo manteve-se viva a chama e o sonho do Nazareno que se comprometeu com a libertação dos pobres e oprimidos chamando-os bem-aventurados e os primeiros no Reino de Deus.

6. Traços de fundamentalismo católico

Há uma grande contradição entre as atitudes do Papa e seus ensinamentos. Para fora, apresenta-se como um paladino do diálogo, das liberdades, da tolerância, da paz e do ecumenismo. Pediu sucessivas vezes perdão pelos erros e condenações do passado. Reuniu-se com líderes religiosos para juntos rezarem pela paz mundial. Por outro lado, para dentro da Igreja atropelou direitos de expressão, proibiu o diálogo, puniu com mão pesada e produziu uma teologia com tons fortemente fundamentalistas.
Os últimos documentos oficiais sustentam que a única religião verdadeira é a católica. Em nome disso ressuscitou a ideia medieval de que fora da Igreja há risco de não haver salvação. As demais Igrejas não são propriamente igrejas, mas comunidades que têm apenas elementos eclesiais. Arroga-se o direito de definir para as mulheres qual é a sua natureza e sua missão no mundo. Proclamou como vontade divina irreformável a incapacidade das mulheres para o sacerdócio.
Comentava, entristecido, um diplomata brasileiro, profundamente cristão: “Só uma Igreja envelhecida, amargurada e crepuscular pode produzir ideais tão melancólicos e de irremediável decadência espiritual”.

7. Apesar de tudo um santo

O projeto político-eclesial esposado pelo Papa não resolveu os problemas que havia se proposto face à Reforma, à modernidade e à questão dos pobres. Antes os agravou e retardou um verdadeiro acerto de contas. A identidade católica foi tão reforçada que deixou a impressão de que o importante mesmo é ser piedoso, obediente aos Pastores, observante das doutrinas e normas eclesiásticas, e totalmente integradas na galáxia eclesial e menos tornar-se um ser humano sensível, solidário, comprometido com a justiça dos pobres, compassivo e cuidador da natureza. Incentivou os cristãos a permanecerem seguros no porto ao invés de convocá-los a lançar-se ao mar alto e, corajosos, enfrentarem as ondas perigosas e a vencê-las.

As limitações de seu estilo de governar a Igreja não impediram que João Paulo II realizasse a santidade pessoal em grau eminente. E a realizou no quadro de uma religião “à antiga” com muitas devoções a santos, especialmente a Nossa Senhora, a relíquias e a lugares de peregrinação. Ele foi um homem de profunda oração. Ao rezar, por vezes, se transfigurava e empalidecia, por outras, gemia e vertia lágrimas. Já foi surpreendido em sua capela particular estendido no chão em forma de cruz, como em êxtase, à semelhança dos “iluminados” espanhóis do século XVI.
A quem cabe a última palavra? À história e a Deus. A nós só é acessível a história e é ela que dirá de seu real significado para o Cristianismo e para o mundo nesta fase de mudança de paradigmas e de passagem de milênio.


Índios vivem hoje situação parecida com a da ditadura.


Entrevista com Maria Rita Kehl


Em novembro de 2012, foi criado um grupo de trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar violações de direitos humanos sofridas por índios e camponeses. Desde então, a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da CNV e coordenadora do grupo, visitou povos indígenas no Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país.
Os depoimentos e relatórios colhidos até agora compõem um painel de abusos sistemáticos cometidos ao longo do período analisado pela comissão (1946 a 1988), em especial durante a ditadura. Inúmeras mortes foram causadas por obras do governo em terras indígenas (como a construção de estradas na Amazônia), sem estudo nem aviso prévio. Frentes de contato despreparadas levaram doenças a tribos isoladas. Há ainda denúncias de trabalho escravo, trabalho infantil, torturas e prisões irregulares. Em entrevista por telefone, Maria Rita Kehl avalia os trabalhos desse grupo da CNV e diz que a situação dos índios hoje é “muito parecida” com a do período da ditadura: “Em todas as audiências públicas surgem também denúncias atuais”.



A reportagem é de Guilherme Freitas,
publicada pelo jornal O Globo, 12-04-2014, 
reproduzido por Unisinos, 14-04.


Eis a entrevista.

Quais foram as maiores violações de direitos dos índios identificadas até aqui pela CNV?


O tema das agressões a índios no Brasil é muito vasto. Estamos convocando a entrar em contato conosco todos que puderem nos indicar violações cometidas em locais isolados ou que não foram noticiadas. O primeiro relatório que recebi, no início dos trabalhos, foi sobre o massacre dos waimiri-atroari, de Roraima. Pelo menos entre 1.300 e 1.500 índios morreram durante a ditadura em consequência da abertura da BR-174 (Manaus-Boa Vista). As causas foram várias. Como não houve aproximação adequada para o contato e os índios não foram informados sobre as obras, eles ouviam as máquinas, saíam das aldeias para ver o que estava acontecendo e eram recebidos a tiro. Como também não houve vacinação, muitos morreram por epidemias. E os índios contam que, durante as obras, aviões passavam e jogavam “uma coisa que não queimava o mato, mas queimava a gente por dentro”. Obviamente não há documentos oficiais sobre isso, mas, pelos relatos, podia ser pesticida.

Que outros povos indígenas foram afetados durante a ditadura?

Além dos waimiri-atroari, fiz mais viagens a aldeias. Os ianomâmi, também em Roraima, enfrentaram a construção de uma estrada, a Perimetral Norte, na terra deles nos anos 1970, sem estudo prévio. Conversei com um ex-agente da Funai, hoje com 80 anos, que se demitiu na época alegando que não queria ser “coveiro de índio”. Ele me disse que as principais causas de morte foram sarampo e gripe e que as frentes da Funai não tomavam vacina, nem remédio, mesmo sabendo que fazer contato assim era como jogar uma bomba no meio dos índios.

Visitei os suruí, na região do Araguaia, onde muitos índios foram torturados em interrogatórios sobre a guerrilha, mesmo não sabendo de nada. Nenhum deles foi anistiado ou indenizado até hoje. Vivem num pedaço de terra minúsculo, praticamente uma favela às margens da Transamazônica, e tiveram o acesso ao rio cortado pelo fazendeiros. Há pouco tempo os xavantes, do Mato Grosso, entregaram um relatório. Fizeram uma cerimônia muito emocionante, primeiro descreveram os abusos na língua deles e depois traduziram para nós. A situação varia em cada região, mas há um padrão de descaso e violência.

Você esteve em regiões onde há ameaças a povos indígenas hoje?

Em todas as audiências públicas surgem também denúncias atuais. O relatório da comissão vai de 1946 a 1988, então não podemos incluir casos de hoje, mas podemos transmitir essas informações ao governo. Fui ao sul da Bahia, onde pataxós e tupinambás sofreram na ditadura e sofrem hoje com ataques de latifundiários e com a presença do Exército na região. Enviei para a presidente Dilma, mas não sei se ela recebeu, o depoimento do cacique Babau, dos tupinambás, que está sendo perseguido. Ele diz que o importante para os índios é ter sua terra, e não receber cesta básica, porque é na mata que eles têm seu modo de vida e fora dela eles perdem as condições para manter sua cultura.
Estive também no Mato Grosso do Sul para ouvir os guarani kaiowá, que até hoje vivem uma situação dramática, sem a homologação das terras. Lá estamos investigando a exploração de trabalho escravo e trabalho infantil indígena. O que precisamos determinar é se houve apoio do Estado a ações de empresas e fazendeiros. Os índios dizem que forças da polícia e do Exército eram acionadas com frequência para reprimi-los. É um padrão que se repete até hoje, e na ditadura foi ainda mais grave: quando a polícia é chamada para atuar contra índios, não pergunta quem tem razão. Os guaranis me disseram: “A gente sabia que quando vinham os de bota preta era pior”.

A Comissão também vai investigar denúncias sobre prisões e torturas de índios, como as que envolvem o antigo Reformatório Indígena Krenak, em Minas Gerais?

Sim, já temos um relatório sobre Krenak, com denúncias consolidadas. O Relatório Figueiredo aponta também violações cometidas em postos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Muitos deles tinham pequenos presídios indígenas. O relatório menciona um tipo de punição, conhecida como “tronco”, mas diferente daquela aplicada a escravos. Esse “tronco” era uma espécie de forquilha feita com dois pedaços de pau. O índio ficava algemado em um deles, sentado, com um pé espremido no meio da forquilha. Isso quem fazia era o chefe do posto do SPI, uma instituição criada com o ideal de “civilizar” o índio.

Pelo que você tem visto e ouvido nas viagens pela CNV, como está a situação dos povos indígenas hoje, comparada à do período da ditadura?

Muito parecida. Acho estranho um país como o nosso ter como principal ponta de crescimento a agricultura, não a de alimentos, mas a de commodities, como soja, cana e milho. É nos estados dominados pelo agronegócio que os índios ainda hoje sofrem ameaças, despejos e assassinatos. O oeste do Paraná e o Mato Grosso do Sul, em especial, são regiões muito atingidas por isso. Morrem caciques, lideranças locais, e os crimes nunca são apurados, ninguém é condenado. Cria-se um clima de medo nessas regiões.

Acabei de voltar de Guaíra, no norte do Paraná, região de muito milho, onde é evidente a imagem ruim que se tem dos índios. Fomos muito bem recebidos no hotel, mas quando voltamos da audiência com objetos indígenas e com a pintura que os índios fizeram em nosso rosto como sinal de amizade, o tratamento mudou completamente. Naquela região, os índios não têm mais espaço para caçar, perderam acesso à água, dependem de cestas básicas, muitas vezes passam fome. A situação deles é tão grave que você pode pensar: por que eles não “desistem” de ser índios? Mas é uma questão de pertencimento cultural. Pense nos brasileiros exilados durante a ditadura: tudo que eles queriam era voltar. O índio não pode ser um exilado dentro do Brasil. É assim que se produz a condição que alimenta o preconceito.


Campanha da Fraternidade 2014 em Roma








Desde cedo comunidades religiosas e leigas articuladas com a causa dos pobres percorreram neste 5º Domingo da uaresma as ruas de Roma rezando a Via Sacra da Campanha da Fraternidade: É para a Liberdade que Cristo nos Libertou (Gl 5,1) – Contra o Tráfico Humano. 



Na Missa que abriu a caminhada, falei do despojamento de Jesus que nos momentos decisivos de sua missão estava nu:

- na encarnação, no presépio na gruta de Belém;
- na hora do batismo, no rio Jordão;
- na hora da morte na cruz, no calvário;
- na hora de sua glória, na ressurreição.

Nós nos unimos nas ruas de Roma a todos aqueles que foram despojados de sua dignidade pelo tráfico humano na Itália, no Brasil e no Mundo. O Papa, no Anjo do Senhor, ao meio dia, registrou a nossa presença. Estendemos a nossa faixa da Campanha da Fraternidade como um troféu. A entrada com a faixa no recinto de São Pedro foi questionada pelos guardas e só com a versatilidade do Arlindo SVD ela não foi abandonada no pretório dos pagãos...


    Cantamos com força:


“Virá 
o dia em que todos, 
ao levantar a vista,
Veremos nesta terra, 
reinar a liberdade!”


O Papa na casa Santa Marta (4.4.2014): O poder tenta silenciar aos profetas, mas não se pode encarcerar o Espírito!

Os profetas perseguidos no palácio e no templo

2014-04-04 Radio Vaticana
acesse o Audio: 


“Cuando se anuncia el Evangelio podemos ser perseguidos”. Lo dijo el Papa Francisco en la misa de esta mañana en la Casa de Santa Marta. El Papa reiteró que hoy en día hay más mártires que en los primeros tiempos de la Iglesia, e instó a los fieles a no tener miedo a la incomprensión y a las persecuciones. El corazón de los malvados que se alejan de Dios que quiere apoderarse de la religión.

El Papa desarrolló su homilía, empezando por el pasaje del Libro de la Sabiduría, en la primera lectura. Y observó que los enemigos de Jesús tienden trampas, traman "calumnias, le quitan la fama". Es "como si prepararan un caldo para destruir al Justo". Y esto porque se opone a sus acciones, “reprocha los pecados contra la ley", les echa en cara "la transgresión contra la educación recibida". A lo largo de la historia de la salvación, observó el Santo Padre, "los profetas fueron perseguidos ", y el mismo Jesús lo dice a los fariseos. Siempre "en la historia de la salvación, en el tiempo de Israel, incluso en la Iglesia -dijo- los profetas fueron perseguidos". Perseguidos porque los profetas dicen: "¡Ustedes equivocaron el camino! Vuelvan al camino de Dios". Y esto, observó, "para las personas que tienen el poder de aquel mal camino, no le gusta”.

“El evangelio de hoy es claro, ¿no? Jesús se escondía, en estos últimos días, porque todavía no había llegado su hora; pero Él sabía cual habría sido su fin, cómo sería su fin. Y Jesús es perseguido desde el principio: recordemos cuando al inicio de su predicación regresa a su pueblo, va a la sinagoga y predica; inmediatamente después de una gran admiración inicial, empiezan: ‘¿Pero éste, sabemos de dónde es? ¿Este es uno de los nuestros? ¿Pero con qué autoridad viene a enseñarnos? ¿Dónde estudió?'. ¡Lo descalifican! Es el mismo discurso, ¿no? "¡Pero éste sabemos de dónde es! Cristo, en cambio, cuando vendrá nadie sabrá de dónde es!'. Descalificar al Señor, descalificar al profeta para quitarle la autoridad!”

Lo descalifican, dijo Francisco, "porque Jesús salía y hacía salir de aquel ambiente religioso cerrado, de aquella jaula". El profeta, reiteró el Papa, "lucha contra las personas que enjaulan el Espíritu Santo. ¡Y por eso es perseguido: siempre!". Los profetas "siempre son perseguido o incomprendidos -afirmó el Pontífice-, abandonados a un lado. ¡No les hacen lugar!". ¡Esta situación, no acabó con la muerte y resurrección de Jesús, continúa en la Iglesia! “Hostigamiento desde fuera y persecución desde dentro". Cuando leemos las vidas de los santos, dijo el Santo Padre Francisco: "cuántas incomprensiones, cuántas persecuciones han sufrido los Santos", "porque eran profetas”.

“También tantos pensadores de la Iglesia fueron perseguidos. Pienso en uno, ahora, en este momento, no lejos de nosotros, un hombre de buena voluntad, un profeta de verdad, que con sus libros reprochaba a la Iglesia de alejarse del camino del Señor. Pronto fue llamado al orden, sus libros puestos en el índice, le quitaron la cátedra y así para este hombre terminó su vida: no hace mucho de esto. ¡Pasó el tiempo y hoy es beato! ¿Pero cómo es que ayer era un hereje y hoy es beato? Porque 'ayer los que tenían el poder querían silenciarlo, ya que no les gustaba lo que decía. Hoy la Iglesia, que gracias a Dios sabe arrepentirse, dice: 'No, este hombre es bueno!'. Es más, está en el camino de la santidad: es un beato".

“Todas las personas que el Espíritu Santo escoge para decir la verdad al pueblo de Dios -añadió el Santo Padre - sufren persecución." Y Jesús "es el modelo, la imagen". El Señor tomó sobre Él "todas las persecuciones de su pueblo". Y aún hoy, observó con amargura Francisco, "los cristianos son perseguidos". "Me atrevo a decir -añadió- que tal vez haya tantos o más mártires ahora que en los orígenes", "porque a esta sociedad mundana, a esta sociedad demasiado tranquila, que no quiere problemas, le dicen la verdad, le anuncian a Jesucristo”: “Pero existe la pena de muerte o el encarcelamiento por tener el Evangelio en casa, por enseñar el catecismo, hoy en alguna parte! Me decía un católico de estos países en los que no se puede orar juntos. ¡Está prohibido! Sólo se puede rezar solos o escondidos. Pero ellos quieren celebrar la Eucaristía y ¿cómo pueden hacerlo? Hacen una fiesta de cumpleaños, fingen celebrar el cumpleaños y allí celebran la Eucaristía, antes de la fiesta. ¡Y esto ha sucedido! Cuando ven que llega la policía, rápidamente ocultan todo y 'Felicidad, felicidad. ¡Feliz cumpleaños! 'Y prosigue con la fiesta. Luego, cuando se van, terminan la Eucaristía. Así tienen que hacer, ya que está prohibido rezar juntos. ¡Hoy en día! Y esta historia de persecución, remarca “el camino del Señor, es el camino de los que siguen al Señor. "Pero, al final, termina siempre de nuevo, como el Señor: con una Resurrección, pero ¡pasando por la Cruz!". Francisco dirigió su pensamiento al padre Matteo Ricci, evangelizador de China, que "no fue comprendido, que no fue entendido. ¡Pero él obedeció como Jesús!” Siempre "¡habrán persecuciones, incomprensiones! Pero Jesús es el Señor, y ese es el desafío y la Cruz de nuestra fe". Que el Señor, concluyó el Papa, "nos dé la gracia para seguir su camino y, si ocurre, incluso con la cruz de la persecución."

Fé e fome – altar vazio


“Diga aos meus bispos que avancem!”



Na recepção pelo Papa Francisco, entreguei um pequeno texto sobre o fato de que 70% das nossas comunidades estão sem eucaristia. Confrontei a realidade com textos do magistério da Igreja. O papa me respondeu: “Eu falei aos bispos no Rio que, particularmente, na Amazônia precisam ter coragem e propor soluções.”


Carência eucarística segundo Aparecida


“O número insuficiente de sacerdotes e sua não equitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz Igreja, preocupa-nos a situação de milhares dessas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos de tempo” (DAp 100e).


Lamento dos bispos da Amazônia legal


Em sua “Carta do Primeiro Encontro da Igreja Católica na Amazônia legal”, de 2 de novembro de 2013, os bispos da região lamentam: “Causa-nos uma profunda dor ver milhares de nossas comunidades excluídas da eucaristia dominical. A maioria delas só tem a graça de celebrar o Memorial da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor uma, duas ou três vezes ao ano.”
O Decreto “Presbyterorum ordinis” é taxativo: “Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Também a Constituição Dogmática “Lumen gentium” fala da Eucaristia como “fonte” e “ponto culminante de todas a vida cristã” (LG 11). Torna-se urgentemente necessário criar estruturas em nossa Igreja para que os 70% de comunidades, que hoje estão excluídos da celebração eucarística dominical, possam participar da “fração do pão” (At 1,42), do “sacramento da piedade, sinal de unidade, vínculo da caridade, banquete pascal” (SC 47).


Valor da Eucaristia segundo Aparecida



“A ação de graças a Deus pelos numerosos e admiráveis dons que nos outorgou culmina com a celebração central da Igreja, que é a Eucaristia, alimento substancial dos discípulos e missionários” (DAp 25; cf. 363).


Adicionar legenda
A comunhão trinitária na Igreja “tem seu ponto alto na Eucaristia, que é princípio e projeto da missão do cristão” (DAp 153).
“Os fiéis devem viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda a sua vida seja cada vez mais vida eucarística. A eucaristia, fonte inesgotável da vocação cistã é, ao mesmo tempo, fonte inextinguível do impulso missionário (DAp 251).
“Sem uma participação ativa na celebração eucarística dominical e nas festas de preceito, não existirá um discípulo missionário maduro” (DAp 252).


Responsabilidade eclesial


A Igreja é responsável para esta situação. Ela deve fazer tudo para que milhares de comunidades, privadas do pão de cada dia, não sejam também privadas da celebração do Sacramentum caritatis (SCa), da celebração do amor, da cruz e da ressurreição que vivem a cada dia.


Proposta

Se “a salvação das almas deve ser sempre a lei suprema” (Cân. 1752) como o Direito Canônico afirma, deve ter soluções. A Igreja, que é sacramento de vida, assume coletivamente essa carência e a sana coletivamente: um grupo de viri probati celebra em conjunto a Eucaristia. A Igreja os convoca e encarrega para fazer comunitariamente, o que nenhum deles pode fazer sozinho. O vínculo com a comunidade e para a comunidade, no interior de uma diocese e paróquia vai fazer da Igreja local uma “comunidade de comunidades” (DSD 58, DAp 99e, 309). São Paulo deixou nenhuma comunidade que fundou, sem eucaristia. Precisamos voltar aos tempos apostólicos!


Papa Francisco canoniza o padre José de Anchieta por decreto



O Papa Francisco assinou nesta quinta-feira, de 3 de abril um decreto que proclama santo o jesuíta espanhol José de Anchieta, conhecido como Padre Anchieta, mais de 400 anos após a abertura de seu processo de canonização.


A assinatura, esperada inicialmente para acontecer na quarta-feira (2), ocorreu durante uma reunião entre o pontífice e o cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação das Causas dos Santos.

Nascido nas Ilhas Canárias, arquipélago que pertence à Espanha, Anchieta ingressou aos 17 anos na Companhia de Jesus, e chegou ao Brasil com 19 anos. Em 1554, participou da fundação de São Paulo. Ao longo de sua vida ficou conhecido pela característica de conciliador. Teve papel fundamental durante o conflito entre os índios Tamoios (ou tupinambás) e os tupiniquins, denominado Confederação dos Tamoios, que ocorreu entre 1563 e 1564.

Na época, os Tamoios, apoiados pelos franceses, se rebelaram contra os tupiniquins, que recebiam suporte dos portugueses. Para apaziguar os ânimos, Anchieta se ofereceu para ficar de refém com os tamoios na aldeia de Iperoig, enquanto outro jesuíta, o padre Manoel da Nóbrega, seguiu para o litoral de São Paulo para negociar a paz.
Enquanto esteve “preso”, sua devoção à Virgem Maria o fez escrever na areia a obra “Poema à Virgem”, com quase cinco mil versos. A imagem deste momento foi retratada séculos depois pelo artista Benedito Calixto.
Anos depois, foi nomeado Províncial do Brasil da Companhia de Jesus, responsável por todas as missões jesuítas do Brasil. Visitou várias regiões até morrer em 1597, aos 63 anos. 

Nas ruas de São Paulo, estátuas de Anchieta e de Anhangüera disputam a atenção dos transeuntes. A Grande São Paulo é atravessada por uma "Via Anchieta", mas também por uma "Via dos Bandeirantes" e uma "Raposo Tavares", lembrando o chamado "ciclo de caça ao índio". O povo herdou a alquimia de sua sobrevivência dos índios colonizados e sabe como pode ser útil acender uma vela a Deus e outra ao diabo. O embate do bem contra o mal – tantas vezes invocado nos autos de Anchieta –, o povo o enfrenta nas ruas de São Paulo, onde a violência real supera a imaginação alegórica do missionário quinhentista. Hoje, os interlocutores principais de Anchieta, os tupinambá, são "Outros" desaparecidos. Sua memória pode significar lembrança e saudade, mas também indignação que visa à ruptura com a barbárie contemporânea.



Comício da Central do Brasil – Propostas de mudanças socioeconômicas na estrutura do País




 Entrevista com João Vicente Goulart, filho do ex-presidente Jango
Por: Patricia Fachin e Luciano Gallas



“O comício do dia 13-03-1964 foi o ponto do início e do fim do governo João Goulart”, avalia o filho do ex-presidente, ao relembrar o Comício realizado na Praça da República, em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, há 50 anos, dias antes da deflagração do golpe militar no país. Cerca de 150 mil pessoas estiveram presentes para ouvir as propostas da chamada Reforma de Bases do então presidente João Goulart.


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Por que o comício realizado em 13-03-1964 na Praça da República, em frente à Central do Brasil, é relevante para entendermos o golpe civil-militar de 1964? Qual o significado histórico e político desse comício?

João Vicente Goulart – O comício do dia 13 foi uma decisão política do governo João Goulart  para propor as Reformas de Base, que consistia num programa de reformas para, sem dúvida alguma, modificar as estruturas sociais e econômicas do país. Esse seria o primeiro de uma série de comícios a serem realizados ao longo de sua gestão.

O governo João Goulart se caracterizou por ter a maior agenda de propostas que esse país já teve até hoje na história republicana. As reformas propostas pelo governo Jango queriam libertar a economia brasileira da dependência externa, e isso, evidentemente, feria os privilégios das elites brasileiras que existem na nossa sociedade desde o período monárquico. As regalias que ainda hoje detectamos em todos os setores e instituições da sociedade brasileira, tanto na área jurídica quanto na área econômica, seriam eliminadas por meio das Reformas de Base.

Com o comício do dia 13, Jango queria, junto e ao lado do povo, fazer as reformas, porque alguns setores resistiam a isso, e havia, portanto, a necessidade de fazer uma mudança constitucional. Mas o Congresso Nacional, à época, já estava profundamente dividido. Parte das elites, pensando nas eleições de 1965, não queria aprovar as mudanças constitucionais necessárias para implantar as reformas. Jango, então, parte junto e ao lado do povo, como ele diz no comício, “na praça que é do povo”, para iniciar as reformas e pressionar o Congresso Nacional a aprovar as mudanças constitucionais necessárias.


Assim, o comício do dia 13 foi o ponto do início e do fim do governo João Goulart, porque as elites já vinham se organizando no país, através da “compra” das redações de pequenos jornais, produzindo filmes anticomunistas, dizendo que Jango tinha relação com eles. Jango nunca foi comunista, mas se criou uma ideia de que os comunistas iam ocupar o país, quando, na verdade, quem estava conspirando contra a pátria e a Constituição eram os militares e a elite arraigada na nossa sociedade. Esse é o ponto principal do comício do dia 13. É o maior comício que se fez em prol das mudanças sociais neste país.



IHU On-Line – Qual foi a repercussão do discurso realizado no comício à época? Esse comício foi fundamental para a deflagração do golpe?

João Vicente Goulart – O golpe já vinha sendo orquestrado desde 1954. Os militares não deram o golpe contra o presidente Getúlio Vargas , porque, com o suicídio, ele conseguiu manter a democracia no nosso país por mais dez anos. O golpe vinha sendo orquestrado contra o trabalhismo. Quando Jango, como Ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas, aumentou o salário mínimo em 100%, teve de pedir sua saída de forma irredutível, porque ele sentiu que, se não saísse do ministério, o manifesto dos coronéis, que depois vieram a ser os generais de 1964, derrubaria o presidente Vargas. Mas, por meio do trabalhismo, Vargas conseguiu aumentar o salário mínimo. Posteriormente, Jango, em seu governo, já havia demonstrado que não tinha se afastado dos trabalhadores brasileiros. Quando ele aprovou o 13º salário, o jornal O Globo disse que seria o fim da economia brasileira, numa manchete em primeira página. Isso demonstra que o golpe já vinha sendo planejado contra o trabalhismo e contra as obtenções das lutas trabalhistas e sociais no país.

O comício se deu no momento político da Guerra Fria , quando Jango decidiu partir junto com o povo. E os militares, que hoje chamam de subversivos os que lutaram pela pátria — como vários documentos demonstram —, foram os verdadeiros subversivos, pois subverteram a Constituição brasileira e deram o golpe, derrubando um governo legítimo. O comício foi um dos itens dentro dessa programação. Inclusive já existem declarações de que o segundo comício das reformas seria realizado em 21 de abril, em Belo Horizonte — essa informação está no livro de José Maria Rabelo, lançado recentemente —, e hoje se sabe que também estava programado o assassinato de todos aqueles que estariam no palanque nesse dia. Havia uma programação de vários comícios em todo o país, para mostrar ao povo brasileiro qual era o teor das Reformas de Base, para que elas não fossem boicotadas pelo Congresso Nacional. Nesse sentido, o comício foi mais um dos fatores que acelerou a queda do governo João Goulart. 



IHU On-Line – Quais eram e o que significavam as Reformas de Base anunciadas por Jango? Qual o objetivo dele com essas reformas? Quais eram as mais urgentes?

João Vicente Goulart – As principais reformas são institucionais, comerciais e políticas, as quais são necessárias até hoje. Este país teve um atraso de 21 anos por conta da ditadura: fecharam o Congresso Nacional, perseguiram homens, lutadores que batalharam pela liberdade. Jango, naquele momento, queria reformar as estruturas sociais do país: fazer as reformas agrária, tributária, urbana e educacional, a lei de remessas de lucros, a encampação das refinarias e das riquezas do subsolo nacional, ou seja, todas as reformas que mexeriam nas estruturas do país.



Reforma capitalista

A reforma agrária, um dos grandes pontos de embasamento da nova estrutura econômica brasileira à época, queria dar dez milhões de novos títulos de propriedades rurais, e isso desenvolveria uma economia de dez milhões de tratores, dez milhões de novas geladeiras, fogões, etc. Jango queria dar um título de propriedade a dez milhões de novos proprietários. Qual é o marxismo  de tudo isso? Não existe marxismo nisso. Trata-se de uma reforma capitalista.

Mas as elites não queriam perder seus privilégios e não queriam uma reforma bancária que melhor distribuísse o crédito. Ainda hoje a reforma bancária é necessária. Os três maiores bancos do nosso país tiveram, de 2007 a 2012, lucros líquidos de 56 bilhões de reais e sem a obrigação de financiar um centavo para a agricultura familiar, para a habitação popular, para a educação. Tudo isso fica por conta do Tesouro Nacional. Então, as Reformas de Base do governo João Goulart estão atualíssimas.

Na edição de domingo do jornal O Globo, na área de economia, estava estampada a remessa de lucros que as Teles, privatizadas criminalmente, enviaram para suas matrizes. Enquanto aqui ficamos falando com uma gravação telefônica e não conseguimos falar com ninguém para fazer uma reclamação, as Teles remeteram para as suas matrizes, em quatro anos, quase 40 bilhões de reais. A reforma educacional, quando Jango assinou a lei de diretrizes orçamentárias, destinava 12% do investimento previsto da nação para a educação. Nunca neste país foi proposto algo parecido.[...]

Não adianta mudarmos o pensamento, se não mudarmos a estrutura. Não adianta colocar no comando um governo de “esquerda” ou de “direita”, se não houver mudanças na estrutura econômica, social e financeira do país.



IHU On-Line - Como as Reformas de Base foram recebidas no Congresso Nacional? Algumas das medidas chegaram a ser implementadas? Quais?

João Vicente Goulart – Jango assinou a lei de remessas de lucros, que estava entre as medidas que poderia assinar como presidente da República; mas outras, não, como a lei da reforma agrária que, de acordo com a Constituição de 1946, precisava que as áreas desapropriadas fossem pagas em dinheiro vivo e à vista. Ele queria pagar em títulos públicos, mas naquela época isso não era possível. Tanto que na mensagem que enviou ao Congresso Nacional em 20 de março de 64, perguntou quais mudanças constitucionais eram necessárias para implementar as reformas.



IHU On-Line - O então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola , acompanhava o presidente João Goulart no ato político. O que levou Brizola a participar do comício?

João Vicente Goulart – Não foi só Brizola que o acompanhou. Estiveram presentes todos os líderes de esquerda que acompanhavam as reformas, como Darcy Ribeiro , que era chefe da Casa Civil, o sindicalismo, os partidos de esquerda, como o PTB. A UDN e o PSD não participaram, porque já eram partidos pró-golpe. [...]


IHU On-Line - A rebelião de marinheiros ocorrida no Rio de Janeiro no dia 25-03-1964, a qual reivindicava o direito de associação, melhores refeições nos quartéis e navios e alteração do regulamento disciplinar da Marinha, demonstra uma cisão do meio militar entre aqueles que apoiavam o presidente João Goulart e grupos conservadores contrários às mudanças?

João Vicente Goulart – O problema militar no Brasil foi provocado. Temos de ver que existiam agentes da CIA infiltrados dentro do movimento dos marinheiros, como o cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos ). Temos de saber que existia um movimento dos cabos e dos marinheiros que era legítimo, mas outros eram financiados pelas ações acobertadas do departamento do Estado. Não tivemos, no Brasil, apenas um golpe dado pelos militares brasileiros. Eles foram financiados, como disse o embaixador Abraham Lincoln Gordon  em 2002, quando veio lançar, no nosso território, a sua autobiografia, tendo sido usados cinco milhões de dólares de verbas secretas da CIA para “comprar” militares e políticos brasileiros. Ou seja, essa declaração demonstra o intervencionismo calhorda dos EUA na Constituição de outros países — e eles continuam fazendo isso.


Então, após um ano e alguns meses de governo presidencialista, e da produção de vídeos contra o governo, é evidente que havia infiltrações no meio militar e civil, e mentiras que foram escondidas. Recentemente foi publicada uma pesquisa do Ibope — que estava “dormindo” em uma universidade paulista — informando que 30 dias antes do golpe havia sido feita uma pesquisa que demonstrava que o presidente Jango tinha 89% de aprovação da opinião pública. Se tivesse uma eleição, ele ganharia. Então, foi tudo uma farsa e uma mentira da grande mídia. Como ainda se faz hoje. A mídia brasileira é dividida. Sete famílias controlam 90% da mídia brasileira. Trata-se de um subgoverno dentro do governo.[...]


IHU On-Line – Como avalia as políticas públicas que vêm sendo implementadas no país ao longo dos anos, sem optar por reformas estruturais, como previa o ex-presidente João Goulart?

João Vicente Goulart – O processo da ditadura foi desastroso. Aquela política de vamos primeiro fazer o bolo crescer para depois dividir, foi uma política criminosa de achatamento salarial, baseada em um desenvolvimento fictício, porque foi um desenvolvimento de 1969 a 73, feito em cima de empréstimos internacionais. Quando Jango caiu, o país devia 980 milhões de dólares e, com mais alguns empréstimos, chegaria ao fim do ano com um bilhão e cem milhões de dólares. Quando a ditadura entregou o país novamente aos civis, em 1989, o Brasil devia 150 bilhões de dólares. Então, o desenvolvimento foi “o resto a pagar” que a sociedade brasileira teve de dar aos fundos internacionais. Isso atrasou o país.


Temos tido, nos últimos 12 anos, um avanço na distribuição de renda, na incorporação de novos setores da sociedade brasileira que estavam na camada mais baixa do orçamento nacional. Obviamente, falta muita coisa a fazer para dar oportunidade idêntica a todos os brasileiros. Acho que se fez muito; temos caminhado bastante nesse sentido de integralização, de oferecer bolsas de estudos. O sistema de cotas à universidade tem trazido camadas da população que antes não frequentavam esse espaço. Apesar disso, a reforma do Estado brasileiro se faz tão necessária quanto há 50 anos. É dever da academia pensar no que foi proposto e em como sairemos de alguns gargalos, como a reforma da previdência, que é uma necessidade neste país. A população está cada vez vivendo mais, e vai chegar um momento em que o fundo previdenciário não atenderá a todos. Então, temos de pensar um conjunto de reformas para o país avançar, porque senão vamos, lamentavelmente, independente de governo de “direita” ou de “esquerda”, atingir um gargalo profundo de estancamento do desenvolvimento.