Em Juazeiro do Norte, o 13o Intereclesial de CEBs foi marcado pela mística dos beatos e das beatas que desde o século passado marcaram o lugar: os padres Ibiapina e Cícero, a beata Maria de Araújo e o beato Zé Lourenço. Trata-se de uma mística articulada com lutas históricas. Construíram comunidades igualitárias, de oração e trabalho. Ibiapina não era de Juazeiro, mas seu espírito percorreu todo o sertão. No início estava a fome e a migração provocadas pela seca. Eis o rosário de Juazeiro: fome – fé – trabalho – fartura partilhada – festa. Os peregrinos e retirantes foram recebidos em Juazeiro com dignidade. Nunca o padre Cícero mandou alguém de volta para os territórios da fome. Todos foram assentados em comunidades de oração e trabalho. O padre Ibiapina tinha esse “rezar e trabalhar” aprendido com os Beneditinos de Olinda, onde estudou jurisprudência. O trabalho comum e a redistribuição dos frutos de trabalho entre todos criou possibilidades do bem viver com sua raiz na mística e luta dos padres Ibiapina e Cicero. Quem quiser aprofundar a história e o espírito de Juazeiro deve acessar o Blog do padre Cícero:
P.S.
1. Desafios e forças
na caminhada das CEBs
O
grupo de assessores da articulação Continental de CEBs, reunido desde o dia 13,
em Juazeiro do Norte (CE) faz reflexões sobre a realidade social e eclesial com
o objetivo de traçar linhas de orientação para o trabalho das comunidades nos
próximos anos. Participam 35 lideranças vindas de países da América Latina e
representantes das Filipinas e Áustria.
Ao
propor uma análise de conjuntura eclesial, padre Manoel Godoy, da arquidiocese
de Belo Horizonte, apresentou nesta terça-feira, dia 14, um esquema para
debater os rumos da Igreja no pontificado do papa Francisco e mais além. O
teólogo partiu do Concílio de Trento que, segundo ele, resgatou a Instituição
da Igreja católica, através da “sistematização de um imaginário sócio-
religioso, além de resgatar o clero com a criação dos seminários e enquadrar os
leigos”. Ele explicou que houve uma disputa hermenêutica: “o Concílio é
continuidade ou ruptura? Com o papa Francisco a concepção de ruptura ganha
força, mas há ainda a ideia muito difundida entre alguns grupos de que as
decisões Concílio Vaticano II são opcionais”.
Medelín
foi o Vaticano II da América Latina e teve como palavra chave, a justiça.
“Reafirmou a Igreja pobre, dos pobres e para os pobres. As CEBs foram
entendidas como maneira privilegiada de estar com os pobres”, destacou Godoy
para e em seguida, fazer algumas considerações sobre Puebla e Santo Domingo, conferências
nas quais houve uma substituição do método indutivo pelo dedutivo (partir da
doutrina e não da realidade). “A Conferência de Aparecida resgata o método
indutivo, porém depois das mudanças na redação final, volta ao dedutivo”,
disse.
O papa
Francisco demonstra gostar muito de Aparecida. “Será que a primavera eclesial é
real?”, pergunta Godoy lembrando que, “a Cúria romana ainda continua intacta”.
O
pesquisador explicou ainda que, “nas últimas três décadas, que abarcam os
pontificados de João Paulo II e Bento XVI, a Igreja sofreu um processo profundo
de desespiritualização que a afundou numa crise similar àquela do período dos
papas mundanos, séculos que antecederam ao Concílio de Trento”.
Isso
por que, segundo Godoy, no afã de querer recuperar o terreno, a Igreja Católica
fez acordos com forças ocidentais como a aliança entre João Paulo II e Ronald
Reagan, as tentativas frustradas de um acordo com a China, os acirramentos de
ânimo entre hindus e católicos na Índia e o proselitismo católico na União Soviética.
“Tais movimentos da Instituição Católica foram acompanhados por fortes ataques
às forças mais progressistas da Igreja, sobretudo no Continente
Latino-americano, tendo como signo os ataques à Teologia da Libertação e às
CEBs”.
O
teólogo avalia que estas posições politizaram a Igreja. “Para tentar dar uma
resposta à desespiritualização fez-se uma aposta nos movimentos em duas frentes
distintas: na Europa, jogaram-se as fichas em instituições de cunho mais
integralista - Comunhão e Libertação, Opus Dei, Neo-Catecumenato, Legionários
de Cristo e Focolare; no chamado Terceiro Mundo, apelou-se, sobretudo, pelos
grupos de cunho pentecostal”. Como isso, a aposta não era mais nas paróquias e
congregações religiosas, mas nos movimentos que começaram a fazer encontros com
a cúpula romana.
Espiritualizar
sem alienar
Hoje
uma das questões mais importantes é espiritualizar sem alienar. “Como se pode
integrar de novo a dimensão espiritual da Igreja na experiência real que dela
têm os cristãos ativos, de tal maneira que se possa viver e experimentar de um
modo expressivo a união indissolúvel entre a concretização pessoal e a
comunidade eclesial da fé?”, pergunta Godoy e recorda que, “as CEBs têm uma
espiritualidade que deveria ser aprofundada para integrar a dimensão espiritual
com a experiência real. O povo precisa ter uma espiritualidade forte nas
comunidades para não ficar apenas fazendo tarefas”, diz. “Essa experiência
eclesial de cunho espiritual, nas CEBs ganha o selo de fidelidade à causa dos
pobres. De fato, o que se constata é uma grande carência de autêntica mística
que ajude os cristãos a manterem uma relação amorosa com a Igreja, sem perder,
contudo, o senso crítico. Isso só se consegue se à mística se une a clara e
inequívoca opção pelos pobres”.
A
trama da religião mágica
Outro
desafio é evitar “a trama da religião mágica e terapêutica que impregnou a
experiência eclesial dos desassistidos. Hoje, muitas comunidades eclesiais de
base vivem numa mescla de luta social com expressões religiosas emotivas e pragmáticas,
não bem articuladas, mas justapostas e até conflitivas. Muitas ostentam seus
grupos de fé e política, mas com liturgias alienantes e regadas de alta dose de
leitura fundamentalista”, alerta Godoy que chama a atenção para uma
“despolitização das CEBs”.
Algumas
características próprias das CEBs foram muito afetadas nos últimos anos, tais
como sua relação com os movimentos populares. “Governos de esquerda trouxeram
uma decepção forte aos cristãos mais engajados. Com o arrefecimento dos
movimentos populares, as CEBs se descaracterizaram sensivelmente, pois perderam
um espaço significativo de sua presença pública, como construtora da sociedade
mais justa e fraterna”, analisa padre Godoy.
A
dimensão profética
Godoy
recorda ainda que a história das CEBs se mistura com a luta dos pobres por sua
dignidade, por seus direitos. “Desse chão é que surgiram os profetas e os
mártires, e somente em fidelidade aos pobres é que as CEBs se manterão sempre
como autênticas comunidades eclesiais, fomentadoras de seguidores de Jesus e
anunciadores da Boa Nova do seu Reino”.
“As
sementes lançadas pelas CEBs em tantos anos de semeadura fecunda, continuam
dando frutos e germinando cá e acolá, ainda que de outra forma diferente e com
outro vigor”. Muito se fala de uma nova primavera eclesial. Diante disso, Godoy
questiona: “será que podemos dizer que com a chegada de Francisco já estamos
vivenciando verdadeiramente tempos novos?”. E faz uma alerta: “É bom ir com
calma, pois o entulho eclesiástico acumulado nos últimos tempos leva anos e
anos para ser removido”.
Características
fundamentais
Na sua
exposição, padre Godoy relacionou dez características que não podem faltar nas
CEBs. A lista foi elaborada pelo padre José Marins, muito conhecido por seus
estudos sobre a temática:
1. A
referência ao Reinar de Deus;
2. A
centralidade da Palavra em todas as nossas ações;
3. O
seguimento do Jesus histórico;
4. A
fidelidade à maneira de ser CEBs (não confundir com pequenas comunidades ou
grupos de movimentos);
5. A
permanente abertura ao outro, num verdadeiro ecumenismo;
6. A
irrenunciável opção pelos pobres;
7.
Celebrar mais criativamente as Eucaristias: sempre próximas do povo,
comprometidas com a vida dos pobres, menos devocionais, com símbolos e cânticos
mais próximos da cultura do povo;
8.
Fidelidade ao método indutivo do ver, pensar, agir, avaliar e celebrar;
9.
Respeito à liberdade religiosa;
10.
Manter a comunidade como fermento do evangelho no seu ambiente, rompendo as
cadeias eclesiásticas para um real comprometimento no social, com perspectivas
profético-missionárias.
[Por Jaime C. Patias]
2. De
volta
Não
só nós, alguns companheiros do Cimi, voltamos de Juazeiro do Norte renovados na
nossa fé. As próprias CEBs estavam de volta. As CEBs, que nos últimos anos
viveram em certa clandestinidade, pela primeira vez em sua história receberam
uma mensagem de um papa. Em sua Carta, o papa afirma que as CEBs “trazem um
novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a
Igreja”. Sobre o lema do evento, o papa disse que deve ser como uma chamada
para que as CEBs assumam cada vez mais seu papel de profetas e protagonistas na
missão evangelizadora da Igreja. “Todos devemos ser romeiros, no campo e na cidade,
levando a alegria do Evangelho a cada homem e a cada mulher”, acrescenta
Francisco. O protagonismo das CEBs é resultado da articulação entre mística
popular e práxis da fé. O binômio “fé e vida”, que aprendemos no rastro da teologia
latino-americana, em Juazeiro, há mais de um século, se aprendeu como articulação
entre “fome e fé”. As secas causaram fome e migração forçada que encontravam no
semiárido da sub-região do Nordeste, no Cariri cearense em torno do Juazeiro,
outro modelo de sociedade.
Durante
o 13o Intereclesial, com seus mais de 5 mil participantes, fomos
cativados pela lucidez e lealdade eclesial do padre Cícero. Visitamos a sua
casa, o museu e todos os lugares de sua atuação marcante e caritativa. Visitamos
a sua história, o milagre da hóstia da beata Maria de Araújo, em 1889, sua
viagem a Roma, seu encontro forçado com Lampião, sua suspensão da administração
dos sacramentos, sua gestão como prefeito de Juazeiro. É um caminho longo desde
a hostilidade dos então bispos de Fortaleza e Crato até a chegada do atual
bispo do Crato, dom Fernando Pânico que atribui sua cura de um câncer que
parecia incurável, a intercessão do padre Cícero. Dom Fernando introduziu em
Roma o processo de reabilitação do padrinho do Nordeste. “Padre Cícero deixou
de ser o padre reprovado, e é reconhecido como um santo sacerdote que o povo
venera com muita razão e que merece que a sua reabilitação seja seguida de um
processo de beatificação” (J. Comblin).
Ao
partir de Juazeiro para Recife, procuramos em várias estações contextualizar mística,
messianismo e militância nordestina.
2.1. Caldeirão do beato
Zé Lourenço.
O
beato Lourenço era negro, leigo e analfabeto que nasceu no catolicismo popular,
com seus rituais inseridos no ritmo da agricultura. “Numa época em que a Igreja
Católica passava longe do povo, levas e levas de miseráveis corriam para
Juazeiro arrastados pela fé e o assistencialismo religioso do sacerdote Pe. Cicero.
A família do beato Zé Lourenço fazia parte dessa massa de desamparados e migra
de Pilões de Dentro, na Paraíba, para o Cariri no final da década de 80 do século
XIX” (Vileci Basílio Vidal). Caldeirão era uma terra que o padre Cícero cedeu
ao beato Lourenço e sua comunidade que cresceu de 500 para mais de 2 mil
membros. O governo republicano destruiu essa comunidade com bombas da aeronáutica
e armas de fogo do exército.
2.2. A Pedra do Reino
Durante
três anos, de 1835 a 1838, em Pernambuco, uma comunidade com cerca de mil
pessoas morou próximo às pedras de 30 e 33 metros de altura. As crenças eram
baseadas no sebastianismo, pregada pelo jovem João Antônio e por seu sucessor,
o cunhado João Ferreira. Dom Sebastião foi o Rei português morto em 1578
quando, aos 24 anos, se lança numa nova Cruzada, rumo ao Marrocos. Na tentativa
de converter mouros em cristãos, desaparece na batalha de Alcácer Quibir. Seu
corpo nunca fora encontrado.
O
Movimento surgiu no município de Floresta (em área que depois integraria o
município de São José do Belmonte), interior de Pernambuco, em 1836, um ano
depois de o estado sofrer uma grande seca. O fanático João Ferreira reunia seus
seguidores em torno de um grande rochedo (a "Pedra do Reino") e dizia
que, para que o rei Sebastião revivesse e pudesse realizar o milagre da
riqueza, era preciso que a grande pedra ficasse totalmente tingida com sangue
humano. Quem doasse o sangue para a volta do rei seria recompensado: velhos
ressuscitariam jovens; pretos voltariam brancos e todos, além de ricos, seriam
imortais na nova vida. Tiradas de suas lavouras pelo flagelo da seca, famílias
de agricultores acamparam em volta da rocha e passaram a aguardar o milagre. A
espera terminou com o massacre da Pedra do Reino, em que 53 pessoas e 14 cães
morreram em sacrifício, entre os dias 14 e 16 de maio de 1838. Uma patrulha do exército massacrou os
sobreviventes.
2.3. Canudos
Depois
nosso retorno de Juazeiro nos levou a Canudos que era uma pequena aldeia que
surgiu durante o século XVIII nos arredores da Fazenda Canudos, às margens do
rio Vaza-Barris. Com a chegada de Antônio Conselheiro em 1893 passou a crescer
vertiginosamente, em poucos anos chegando a contar por volta de 25 000
habitantes. Antônio Vicente Mendes Maciel, apelidado de "Antônio
Conselheiro", nascido em Quixeramobim (CE) em 13 de março de 1830, de
tradicional família que vivia nos sertões entre Quixeramobim e Boa Viagem, fora
comerciante, professor e advogado prático nos sertões de Ipu e Sobral. Antônio
Conselheiro rebatizou o local de Belo Monte, apesar de estar situado num vale,
entre colinas.
Em
Canudos, as ruínas da histórica aldeia de Antônio Conselheiro foram inundadas
há mais de quatro décadas para a construção de um açude.
Quando
Canudos foi inundado, o Brasil era governado pelos militares. Naquela época,
sociólogos, historiadores e intelectuais brasileiros reagiram revoltados,
alegando que um episódio triste e polêmico da nossa história estava sendo
encoberto, apagado para sempre. Era difícil imaginar que um dia a seca fosse
revelar o que sobrou da velha cidade. O cenário da guerra foi apagado, mas o da
seca está preservado. Na região, pouco mudou entre os dias atuais e os tempos
de Conselheiro e seus seguidores. É o caminhão-pipa como plano de emergência,
como antigamente eram outras medidas paliativas. São sempre medidas
paliativas”, diz o historiador Manoel Neto.
2.4. Aldeia Serrote
dos Campos (PE)
O
povo Pankará da Aldeia Serrote dos Campos de Itacuruba (PE), imprensados por
dois canais da transposição do Rio São Francisco, luta contra a construção de
uma Usina Nuclear que deverá fornecer energia para a transposição do Rio S. Francisco.
Quando
o povo pankará foi transferido de sua aldeia da margem do Rio São Francisco
para um terreno pedregoso e sem água, em Itacurubá, a 466 quilômetros do
Recife, o então cacique Geraldo Cabral pensou que o megaprojeto da Represa de
Itaparica era o último ataque à história dos pankará, índios que resistiram,
durante quatro séculos, a jesuítas, franciscanos, capuchinhos, criadores de
gado, escravagistas, cangaceiros, coronéis, líderes messiânicos, corruptos e
assentados da reforma agrária. O susto maior foi quando os índios receberam a
notícia de que o caminho na caatinga levaria a uma usina nuclear.
O
projeto de uma usina no semiárido nordestino chegou a ser anunciado em 2011
pelo ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. A ideia está engavetada, pois
não convenceu setores influentes do governo e recebeu críticas pesadas de
políticos e cientistas. Uma estrada, porém, começou a ser aberta na terra dos
pankarás para garantir o acesso a um sítio, a 8 km das malocas, reservado para
a usina.
'Bomba'.
"No passado, eles tiraram a gente da beira do rio, onde tinha água e
peixe. A gente ficou na pedra", lembra Fernando Antonio da Silva, de 65
anos, um dos mais antigos do povo pankará.
Os
técnicos do governo espalharam no centro de Itacurubá a versão de que serão
criados, durante as obras, 4 mil empregos - e depois, a usina, que "não é
uma bomba", trará finalmente o desenvolvimento da região. Era uma notícia
robusta para os habitantes de Itacurubá, Rodelas e Petrolândia, cidades
reconstruídas pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Chesf, após a
inundação da represa.
Os
moradores da região saíram de uma economia de subsistência, de pequenas
criações e lavouras, para viver ao redor das prefeituras e dos salários do
funcionalismo público, em novos centros urbanos. "O governo sabe tudo o
que está ocorrendo", diz, resignado, Jorge França, de 40 anos, uma das
novas lideranças dos pankará. "Eles (os políticos) sempre nos viram como
pessoas que empatam o desenvolvimento do Brasil", reclama a cacique
Lucélia Leal Cabral, de 34 anos. "Não ganhamos indenização em 1988 e não
queremos agora. O povo precisa apenas de paz para sobreviver."
A vida de fé desse sofrido povo, um testemunho emocionante de gerações que teimam em tirar força e esperança das condições mais adversas possíveis, suscita uma nova releitura daquela realidade, a fim de que caminhemos para um processo de autêntica conversão e solidariedade efetiva, em relação aos nossos irmãos obstinados na luta pela vida com dignidade.
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