No mundo marcado pelo
neoliberalismo, nem viver nem navegar são precisos.
Feliz Ano Novo a todos os
amigos e amigas num mundo onde
NAVEGAR É PRECISO E VIVER SEJA DESEJÁVEL!
Em outubro, Lampedusa foi palco de um dos piores desastres
ao longo de duas décadas de imigração, quando um barco afundou perto da costa,
matando pelo menos 366 pessoas. Depois de um incêndio, a embarcação superlotada
que transportava mais de 500 imigrantes naufragou a poucas centenas de metros
da costa da ilha italiana, alvo de milhares de imigrantes que fogem do Norte da
África em balsas frágeis.
A foto é de Mário Sérgio Rainha Campos,
tirada na Aldeia Kararaô, no Xingu. O Departamento
de Direito Internacional da OEA promoveu em parceria com o Art Museum of the Americas um concurso
de fotografia com o tema “OLHARES INDÍGENAS”. A fotografia de Mário Sérgio foi
clássificada como vencedora e ele me pediu um comentário para ser apresentado
na premiação que ocorreu em 9 de novembro de 2013 em Washington.
“A menina é filha de um povo ameaçado em sua sobrevivência cultural e
física. A ambição, a ganância, a busca desenfreada de riquezas passam por cima
de seres humanos, profanam sua sabedoria milenar e os consideram supérfluos e
descartáveis. O mundo em que só vale quem produz ou consome os condena à morte.
O Xingu é a última fronteira indígena. Aqui se abrigam ainda povos de
todos os troncos linguísticos da América do Sul. Belo Monte é o golpe fatal no
coração da Amazônia, o réquiem para os povos indígenas. Belo Monte é a
orquestração de dissonâncias e cacofonias que hoje se sobrepõe às vozes
paradisíacas das selvas outrora eternas, que sufoca o silêncio das águas
intermináveis e irá emudecer o estrondo das majestosas cataratas.
A menina não sabe que está sendo preparada para um rito que um
apocalipse implacável engendrado por homens desalmados pretende destruir para
sempre. Oxalá a foto se transforme num último ingente clamor de todos os
indígenas a sacudir a humanidade, um brado de esperança para quem não quer
morrer e acredita até hoje no "sumak kawsay" no "bem viver"
para todos e sempre.“
O drama dos índios Awá e a resistência de seu povo que tenta
impedir a ação criminosa de madeireiros na Reserva Biológica Gurupi, onde o
território indígena já perdeu 30% de sua paisagem original.
Piraima’a (à esquerda) e seu pai
(Pirama’a) mostram marcas feitas por madereiros que
invadem a floresta para
cortar ilegalmente árvores em terras indígenas. Esse tipo de árvore
(Tabebuia)
tem alto valor no mercado, mas é também sagrada para os Awá.
Considerados um dos últimos povos caçadores e coletores do
planeta, os poucos mais de 400 Awá que povoam o que restou da Floresta
Amazônica no Maranhão vivem o momento mais decisivo de sua sobrevivência:
impedir que grileiros, posseiros e madeireiros destruam o seu mais valioso bem.
É das árvores e da mata densa situadas na Reserva Biológica do Gurupi, de onde
tiram o seu alimento, a sua certeza de amanhã poderem garantir a continuação de
seu povo, de sua gente. Eles não querem nada mais do que a garantia do governo
federal de que não terão o seu terrítório devastado pela ganância do homem
branco, que avança a passos largos em busca de madeira nobre.
Apesar de sua terra já estar demarcada, homologada e
registrada com 116.582 hectares pela União, eles enfrentam uma ameaça real de
assistir à destruição da floresta da qual são tão dependentes e de onde tiram o
sustento de seus filhos. Ainda que a Justiça já tenha determinada a retirada
desses 'intrusos' ou não índios, como define a Funai, os Awá temem pela própria
sorte, se afirmam em sua coragem e não vacilam quando veem sua resistência em
xeque. "Não temos medo. Vamos resistir", dizem em discursos
emocionados.
Liberação da terra
Awá
Míriam Leitão, Coluna
no Globo, 24.12.2013 -
Vai começar a desintrusão da Terra Awá. A palavra é
estranha, mas quer dizer algo que se esperava que acontecesse ao longo deste
segundo semestre, até por ordem judicial: a retirada dos não indígenas da área
demarcada e registrada como dos índios do grupo Awá Guajá, no Maranhão. Chove
muito esta época do ano, mas será assim que as tropas vão se deslocar.
A ordem do juiz federal no Maranhão José Carlos do Vale
Madeira estabeleceu prazos e modos da retirada dos não indígenas. O governo já
reuniu todos os órgãos envolvidos e concluiu o plano da retirada dos não
indígenas.
Os que estiverem instalados na terra indígena receberão nos
próximos dias notificações para deixar o local. Os moradores terão 40 dias para
retirar seus bens. Ao final do prazo, serão desapropriados. Foram expedidos
mandados de busca e apreensão de todos os equipamentos que estiverem ligados à
prática criminosa.
Vão se deslocar para cumprir a ordem judicial, e o plano do
governo, tropas do Exército e funcionários da Funai, ICMBio, Incra, Ministério
Público, Força Nacional de Segurança, Polícia Militar do Maranhão. Foi criado,
por ordem do juiz, o Comitê de Desintrusão da Terra Awá Guajá, com
representantes de todos esses órgãos e mais a OAB, ABIN, Secretaria-Geral da
Presidência, Ibama, um integrante da Assembleia Legislativa e outro do Governo
do Maranhão.
Será instalada para executar a operação uma grande base em
São João do Caru e outra em Vitória da Conquista, no Maranhão, onde há grande
concentração de madeireiros.
O governo vai derrubar as cercas e fechar os ramais que
foram abertos pelos madeireiros nas invasões frequentes da Terra Awá. A ideia é
abrir apenas uma estrada que contorne a terra para facilitar o acesso da
fiscalização. O risco é a estrada acabar facilitando novos ataques à mata onde
vivem os índios, nessa área que é um dos últimos remanescentes de Floresta
Amazônica no Maranhão.
Em agosto, o GLOBO publicou uma longa reportagem feita por
mim e pelo fotógrafo Sebastião Salgado (*). “O Paraíso Sitiado” teve como
título na primeira página o resumo do que vimos lá: “Eles estão em perigo.” Era
o começo da estação madeireira, e os índios estavam encurralados por
madeireiros que atacavam a floresta por todos os lados. Ameaçavam reagir, mas
como? São 400 pessoas de um grupo contactado no final dos anos 1990, depois de
terem fugido por quase 500 anos.
Os Awá são nômades, acabaram de ser aldeados, poucos falam
português, são do tronco Tupi e têm uma ligação intensa com a floresta, porque
creem que a existência do mundo após a morte depende da manutenção da floresta
em pé.
Como sempre, nestas situações, a ocupação da terra indígena
foi feita tanto por grileiros e madeireiros, quanto pelos posseiros. A Justiça
julgou que eles não são ocupantes de boa fé; ou seja, sabiam que era uma terra
indígena. Apesar disso, há enorme diferença entre os dois grupos. A ordem
judicial determina que os posseiros recebam ajuda do governo através de
financiamentos do Pronaf, sementes, inclusão no Bolsa Família, inscrição no
INSS e concessão de terra através do Incra. Há uma área próxima, em Bom Jardim,
onde devem ser assentadas 60 famílias. Outras receberão crédito fundiário.
Há uma grande fazenda, o empreendimento agropecuário Alto
Turiaçu, na terra indígena Awá Guaja, que terá que sair imediatamente. A
Justiça determinou a desocupação da fazenda e a retirada — ou demolição — dos
imóveis e dos bens móveis e animais.
A Coordenação dos Índios Isolados e Recém Contatados da
Funai quer iniciar, em seguida, o trabalho de reconstituição da cobertura
florestal na área desmatada da terra Awá Guajá.
“Quem tem plano para o futuro possui uma vontade e um
desejo de se religar com a sociedade”
Durante um mês, o sociólogo Paulo Magalhães, de 61
anos, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), conviveu com 35
moradores de rua, segundo noticiou a coluna de Ancelmo Gois. Concluiu que vivem
em grupos e que a melhor solução é manter essas relações afetivas.
A entrevista é de Catharina Wrede e publicada pelo
jornal O Globo, 18-12-2013.
Eis a entrevista.
Como surgiu a ideia do projeto? Você desde o início
pensava em morar um mês com os moradores de rua?
Foi uma demanda do Adilson Pires (vice-prefeito), que
contratou o Iets pra fazer três coisas: uma contagem da população de rua; em
seguida, uma pesquisa qualitativa que tenta aprofundar algumas questões; e uma
pesquisa quantitativa, um perfil geral. Eu fiquei responsável pela parte
qualitativa.
Qual foi a estratégia de pesquisa in loco?
Durante um mês, passeei por locais, convivi com os
moradores de rua, me misturei, sentava nas rodas deles. Me concentrei nas regiões
do Centro, Largo do Machado e Leme. Eu estava insatisfeito com o que a
literatura sobre o assunto colocava, sempre focando no drama pessoal de cada
um, querendo saber como eles foram parar ali. Eles são profundamente marcados
por essas histórias e revivem a dor sempre que pedem para recontarem tudo. Eu
quis saber das relações deles ali nas ruas, sobre o amor. Fiz uma outra
abordagem, sem aquele ranço mais clássico. Teve um negro muito sisudo, fechado,
que já tinha um discurso pronto quando queriam saber como ele tinha ido para a
rua. Eu virei para ele e perguntei: “você já se apaixonou alguma vez?”. Ele
mudou o semblante na hora. Mas o que eu queria mesmo entender era por que é bom
morar na rua.
E você conseguiu entender? Por que eles preferem continuar
na rua a ir para abrigos?
Consegui. Eles são, em primeiro lugar,
territorializados. Eles se estruturam em grupos, desenvolvem relações de afeto,
comemoram aniversários, datas festivas — menos o Natal, porque remete à família
e aí “ferra” com eles —, há uma forte vida grupal. Em segundo lugar, eles têm
uma estratégia. Todo mundo diz que a rua é violenta. Então, eles se banalizam,
se misturam à paisagem urbana. Como se tornam rostos conhecidos de determinadas
regiões, não são mais hostilizados, porque não representam uma ameaça. É uma
invisibilidade que se dá na medida em que não representam perigo para os
moradores locais. Depois, eles usufruem de uma rede societária de proteção
social. Uma rede local de solidariedade, em que ganham quentinhas de comerciantes,
usam os banheiros de alguns estabelecimentos, conseguem tomar banho... E existe
uma rede maior, privada, que também contribui: instituições que dão sopas,
outras que dão remédios, laboratórios que distribuem café de manhã cedo. Com
isso, eles se mantêm perfeitamente.
A maioria dos moradores de rua não passa fome?
Não passa mesmo. A autoestima está muito na
alimentação. Eles comem quentinhas boas, não existe problema de alimentação.
Agora, aquela sopinha rala e amarela do abrigo... Eu vi o que é. Aquilo não
segura. Na rua, o difícil é a droga. Isso eles não ganham, então têm que pedir
esmola. Um deles falou claramente para mim: “se você me der R$ 50, eu vou
cheirar tudo”. Aí, falam que precisam de dinheiro para comprar um remédio e
tal, mas não consideram uma mentira no sentido ético. É tudo representação.
Eles podem se vestir de uma forma muito melhor do que vemos. Mas precisam
cumprir a expectativa social do que é o mendigo. Não é que eles tenham
consciência absoluta disso, mas é por aí.
Na sua opinião, qual é o pior momento para eles?
O choque de ordem que acontece a partir de meia-noite,
com as vans da Secretaria municipal de Assistência Social, que passam metendo
bronca, mesmo. Recolhem eles e levam tudo que eles têm embora, suas
preciosidades. Isso eu não vi, mas eles dizem que apanham muito lá dentro.
E qual foi o momento mais difícil para você durante o
processo?
Senti medo no hotel (hotéis do governo, que abrigam a
população de rua). É uma loucura, rola “porradaria” entre eles, é um ambiente
super depressivo. Acompanhei a chegada deles nesse abrigo, para onde são
levados até as 22h. Recebem uma sopa rala e vão para os quartos, completamente
separados de seus grupos. Para se ter uma ideia, o porteiro fica numa cela, por
segurança. O clima é de tensão absoluta, eles não confiam uns nos outros, acham
que vão ser roubados. Não é como a rua. Esses lugares não servem para
acalmá-los, muito pelo contrário.
Qual a melhor solução para a questão?
Estou totalmente convencido de que é preciso resgatar o
grupo. A questão não é individual, é grupal. Não adianta tentar reintegrá-los
às antigas famílias. Elas não existem mais. As relações são outras depois que
passam a viver na ruas. As políticas públicas deveriam buscar essas novas
famílias afetivas formadas por eles. É preciso analisar o grupo e ver o que
fazer. Acho muito mais exequível trabalhar com a rede coletiva como forma de
saída do que unicamente o indivíduo. Durante o tempo que passei no Leme,
conheci um casal que se conheceu na rua. Ele, apesar de muito drogado o tempo
inteiro, sempre se dizia apaixonado pela namorada. Ela, mais lúcida, dizia que
eles queriam casar e ter um filho. Como separar esses dois? Não dá. Há muita
dor, mas muito amor entre eles também.
O que mais te chamou a atenção?
Eles têm retórica. Essa ideia de que os moradores de
rua são pessoas hiper despreparadas é furada. Eles têm uma consciência
absoluta, sabem da condição deles. Não é aquela imagem de um cara totalmente
degradado, que não tem nada. Eles têm uma reflexão. Básica, mas têm. Não são
completamente desprovidos do conhecimento, do saber, ainda que de forma
precária. E, além disso, a capacidade de vislumbrar uma perspectiva mínima de
futuro também me surpreendeu. Eu concebo que quem tem plano para o futuro
possui uma vontade e um desejo de se religar com a sociedade. Falta apenas esse
gancho.
Ao lado do esmoleiro apostólico, Konrad Krajewski, o Papa Francisco recebe,
no dia de seu aniversário, três sem-teto e o cachorro de um deles para um café da manhã no Vaticano O grupo vive nas proximidades do Vaticano.
Mais
de cinco meses depois de ter sido preso por portar água sanitária e Pinho Sol
perto de um protesto no centro do Rio de Janeiro, o morador de rua Rafael Braga
Vieira recebeu a primeira visita na sexta-feira passada, dia 6, no complexo
penitenciário de Japeri. Só então ficou sabendo da notícia que circulava há
três dias pelos jornais de todo o país: fora condenado a 5 anos e 10 meses em
regime fechado pelo “crime”.
A
visita era a advogada Raphaela Lopes, do Instituto Defensores de Direitos
Humanos, que assumiu a sua defesa, e vai recorrer. Rafael estava cabisbaixo,
amedrontado e ficou perplexo com a condenação. Depois do encontro, a advogada
reforçou sua tese: a polícia e a justiça ignoraram direitos e princípios
básicos pelo fato de Rafael ser morador de rua, pobre e negro – uma pessoa sem
defesa ou rede de apoio.
O
exemplo mais gritante é a imagem de sua prisão: Rafael foi algemado pelos pés,
uma prática de humilhação que deveria estar banida das penitenciárias do país.
“Até o uso de algemas no braço hoje é condenado pelo STF (Supremo Tribunal
Federal), o policial só pode algemar se o preso oferecer risco. Imagina nos
pés? É desumano, prática do século retrasado, o que se fazia com os escravos”,
argumenta Raphaela. A foto foi publicada pelo site Rio na Rua, que faz cobertura
independente dos protestos.
Para
tentar responder a pergunta do post passado "Quem é Rafael Braga
Vieira?" e entender o que essa condenação pode representar para o Brasil, o
blog entrevista a advogada e única pessoa a visitá-lo até agora.
Como
será a defesa de Rafael?
Ele
foi condenado por porte de material explosivo, mas foi flagrado com duas
garrafas plásticas. O coquetel molotov necessariamente precisa de garrafa de
vidro, é assim que a fagulha se espalha. O juiz diz ainda que uma das garrafas
tinha quantidade mínima de álcool e o condena por uma suposta intenção de
incendiar. Essa é uma a arbitrariedade sem base jurídica. Assumir que a pessoa
tem a intenção de incendiar só porque ela está andando com uma garrafa que
contém álcool?
O
que ele tem a dizer sobre os protestos?
Nada.
Ele não estava na manifestação. Ele não tem nenhum tipo de ligação com as
manifestações. Foi a pessoa errada na hora errada.
Poderia
falar um pouco sobre quem é Rafael Braga Vieira?
Ele
é negro, tem 25 anos, cursou até a 5a série, tem 6 irmãos, a mãe dele mora na
Penha ele trabalha em brechós na Praça XV de Novembro. É complicado descrever
alguém que se conheceu na cadeia, a pessoa está com medo, o tempo todo
recebendo ordens, ele mal olhava nos nossos olhos.
Como
ele reagiu à notícia da condenação?
Ele
ficou surpreso com a rigidez e por ser em regime fechado. Nos pediu para
contatar a sua mãe, que ainda não está sabendo da prisão.
Qual
sua avaliação desse caso?
O
juiz tira dele direitos básicos, como o benefício da dúvida. No direito penal,
há a presunção da inocência. Ou seja, se há alguma dúvida, é preciso dar ao réu
o benefício da dúvida. O Rafael teve esse benefício negado, como se certos
princípios não se aplicassem a ele. Na minha avaliação, ele não foi condenado
por um crime, ele foi condenado por ser morador de rua, pobre, negro. Isso fala
muito sobre o atual cenário que vivemos no Rio de Janeiro, onde cresce um
modelo de cidade excludente, para poucos, elitista. Pessoas como o Rafael não
são desejadas nesse cenário. Esse discurso pode soar radical, mas é a forma
como as coisas acontecem, como a argumentação contra ele é construída na
sentença.
O
que esse caso diz sobre o modo como o estado e a justiça lidam com os
protestos?
Existe
uma pressão para que pessoas sejam responsabilizadas pelo quebra-quebra e
vandalismo. As pessoas detidas servem como bode expiatório. O que me intriga é
a resposta do estado aos protestos: não há diálogo, abertura para entender o
motivo da insatisfação. O estado só responde com mais repressão e
criminalização. Que democracia é essa? As pessoas estão protestando dentro de
um contexto político, mesmo aquelas que estão quebrando as coisas. O Rio tem um
contexto violento de cerceamento e exclusão das populações pobres. A forma como
a cidade está sendo preparada para os megaeventos é uma pauta política, mas não
há disponibilidade do estado em dialogar.
A
condenação de Rafael pode servir como um recado para assustar futuras
manifestações?
Sem
dúvida. Principalmente pela pena tão alta. Mais uma vez, a reação do estado é a
criminalização.
Tem
mais alguma coisa a acrescentar sobre Rafael?
Nós
fizemos exatamente essa pergunta a ele “tem alguma coisa que você queira falar
pras pessoas lá fora?”. Ele não disse nada. Só frisou a vontade de que sua mãe
ficasse sabendo.
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Eduardo
Baker: Moinhos de gastar gente
A tentativa do Estado de criminalizar e condenar aqueles e aquelas
que têm feito da rua o lugar para expressar seu desejo de transformação social
fez sua primeira vítima.
Se
entre os manifestantes temos uma multiplicidade de classes, raças, corpos e
mentes, não por acaso o primeiro enviado ao cadafalso foi um morador de rua
negro de 26 anos chamado Rafael Braga Vieira.
Ainda
que o discurso oficial seja de guerra a quem faz da tática "black
bloc" sua forma de resistência, a seletividade garante a repressão penal
apenas em um mesmo grupo estigmatizado.
As
prisões em manifestações parecem confirmar esse quadro. A outra pessoa detida é
Jair Seixas, o Baiano, igualmente negro e militante pela causa dos sem-teto.
Ele teve seu pedido de liberdade negado de forma unânime pela 2ª Câmara
Criminal sob o argumento da manutenção da ordem. Para a Justiça, não há espaço
para garantias penais mínimas se você é negro e pobre.
Jair Seixas Rodrigues, o Baiano
Rafael
foi condenado a cinco anos de prisão em regime fechado, no dia 2 de dezembro de
2013, por porte de artefato explosivo. Rafael portava duas garrafas de
plástico. Uma de água sanitária e outra de desinfetante que conteria álcool.
Ele usava o material para limpar seu local de descanso, o chão da rua. A
"prova" de seu suposto crime estaria no depoimento de policiais e em
um parágrafo do laudo técnico da perícia, que na maior parte comprova que
Rafael era inocente.
Os
PMs, segundo a sentença, "são pessoas idôneas e isentas". Os relatos
e vídeos de flagrantes forjados não parecem ter sido capazes de derrubar a
falsa ideia, predominante no Judiciário, de que a fala de quem efetua a prisão
é prova idônea e suficiente para criminalizar.
O
laudo técnico, por outro lado, descreve as garrafas como tendo "mínima
aptidão para funcionar como coquetel molotov", servindo no máximo
"como arma de coação, intimidação". Ainda assim, a conclusão do
Judiciário é que a tese defensiva e o interrogatório evidenciam "uma
tentativa desesperada de esquivar-se das imputações formuladas". Uma "uma
versão pueril e inverossímil".
A
pena foi agravada de quatro para cinco anos pelo fato de Rafael já ter sido
previamente criminalizado. No entender do julgador, é igualmente necessário que
o regime de cumprimento seja o fechado, pois é "adequado para garantir o
caráter repressivo e preventivo" da pena.
A
falta de compreensão não parece estar naquele que passará seus próximos anos
encarcerado em uma cela superlotada sem acesso adequado à alimentação e saúde.
Quando há uma condenação por porte de artefato explosivo sem artefato explosivo,
segundo laudo pericial, a incompreensão parece estar em outro lugar. Quando se
afirma que é preciso que se prenda (de novo) para o sujeito entender que a
prisão previne o suposto crime, a incompreensão parece estar em outro lugar.
Quando se fundamenta uma condenação na fala de policiais que realizam o
flagrante, contrariando o laudo pericial, a incompreensão parece estar em outro
lugar.
A
incompreensão está do lado do aparato repressivo do Estado. As instâncias se
fazem cegas ao prender-se a uma lógica militarista e punitivista que vê na
repressão violenta a única forma de se lidar com a demanda popular. Não é por
acaso que Amarildos desaparecem e Rafaeis alimentam o moinho de gastar gente do
sistema carcerário brasileiro. Quem não entende é quem acredita que essa
condenação é neutra e justa. Todos os presos são políticos. Rafael é mais um
deles.
EDUARDO
BAKER, 28, é advogado da ONG Justiça Global, que atua na área de direitos
humanos; 10.12.2013, F.d.S.P., Opinião, A3
O
ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela morreu aos 95 anos em Pretória,
nesta quinta-feira (5), anunciou o atual presidente, Jacob Zuma. Mandela ficou
internado de junho a setembro devido a uma infecção pulmonar. Morreu às 20h50, no horário local de Pretória. "Ele
partiu, ele se foi pacificamente na companhia de sua família”, afirmou o
presidente. “Nossa nação perdeu seu maior
filho. Nosso povo perdeu seu pai.”
Conhecido
como “Madiba” na África do Sul, ele foi considerado um dos maiores heróis da
luta dos negros pela igualdade de direitos no país e foi um dos principais
responsáveis pelo fim do regime racista do apartheid, vigente entre 1948 a
1993.
Ficou
preso durante 27 anos e ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1993. Foi eleito em
1994 o primeiro presidente negro da África do Sul, nas primeiras eleições
multirraciais sul-africanas.
Em
1952, já presidente da Liga Jovem do Congresso Nacional Africano, foi escolhido
líder da campanha de oposição contra seis leis consideradas injustas. Acusado
sob a Lei de Supressão do Comunismo, foi preso e condenado a trabalhos
forçados.
Havia
algum tempo sua saúde frágil o impedia de fazer aparições públicas na África do
Sul - a última foi durante a Copa do Mundo de 2010, realizada no país.
Biografia
Mandela
nasceu em 18 de julho de 1918 no clã Madiba no vilarejo de Mvezo, no antigo
território de Transkei, sudeste da África do Sul. Seu pai, Henry Gadla
Mphakanyiswa, era chefe do vilarejo e teve quatro mulheres e 13 filhos -
Mandela nasceu da terceira mulher, Nosekeni. Seu nome original era Rolihlahla
Mandela.
Após
seu pai morrer em 1927, ele foi acolhido pelo rei da tribo, Jongintaba
Dalindyebo. Ele cursou a escola primária no povoado de Qunu e recebeu o nome
Nelson de uma professora, seguindo uma tradição local de dar nomes cristãos às
crianças. Conforme as tradições Xhosa, ele foi iniciado na sociedade aos 16
anos, seguindo para o Instituto Clarkebury, onde estudou cultura ocidental. Na
adolescência, praticou boxe e corrida.
Mandela
ingressou na Universidade de Fort Hare para cursar artes, mas foi expulso por
participar de protestos estudantis. Ele completou os estudos na Universidade da
África do Sul. Após terminar os estudos, o rei Jongintaba anunciou que Mandela
devia se casar, o que motivou o jovem a fugir e se mudar para Johanesburgo, em
1941.
Em
Johanesburgo, ele trabalhou como segurança de uma mina e começou a se
interessar por política. Na cidade, Mandela também conheceu o corretor de
imóveis Walter Sisulu, que se tornou seu grande amigo pessoal e mentor no
ativismo antiapartheid. Por indicação de Sisulu, Mandela começou a trabalhar
como aprendiz em uma firma de advocacia e se inscreveu na faculdade de direito
de Witwatersrand.
Mandela
começou a frequentar informalmente as reuniões do Congresso Nacional Africano
(CNA) em 1942. Em 1944, ele fundou a Liga Jovem do Congresso e se casou com a
prima de Walter Sisulu, a enfermeira Evelyn Mase. Eles tiveram quatro filhos
(dois meninos e duas meninas) – uma das garotas morreu ainda na infância.
Em
1948, ele se tornou secretário nacional do Congresso Nacional Africano (CNA) –
no mesmo ano, o Partido Nacional ganhou as eleições do país e começou a
implementar a política de apartheid (ou segregação racial). O estudante conheceu
futuros colegas da política na faculdade, mas abandonou o curso em 1948,
admitindo ter tido notas baixas - ele chegou a retomar a graduação na
Universidade de Londres, mas só se formou em 1989 pela Universidade da África
do Sul, quando estava preso.
Em
1951, Mandela se tornou presidente do CNA. Em 1952, ele abriu com o amigo
Oliver Tambo o primeiro escritório de advocacia do país voltado para negros. No
mesmo ano, Mandela foi escolhido como líder da campanha de oposição encabeçada
pelo CNA e viajou pelo país, em protesto contra seis leis consideradas
injustas. Como reação do governo, ele e 19 colegas foram presos e sentenciados
a nove meses de trabalho forçado.
Em
1955, ele ajudou a articular o Congresso do Povo e citava a política pacifista
de Gandhi como influência. A reunião uniu a oposição e consolidou as ideias
antiapartheid em um documento chamado Carta da Liberdade. No fim do ano,
Mandela foi preso juntamente com outros 155 ativistas em uma série de detenções
pelo país.
Em
1963, Mandela e outras nove pessoas foram julgados por sabotagem, no que ficou
conhecido como Julgamento Rivonia. Sob o risco de ser condenado à pena de
morte, Mandela fez um discurso à corte que foi imortalizado.
“Eu
lutei contra a dominação branca, e lutei contra a dominação negra. Eu cultivei
o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivem
juntas em harmonia e com oportunidades iguais. Este é um ideal pelo qual eu
espero viver e alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou
preparado para morrer”, afirmou. Em 1964, Mandela e outros sete colegas foram
condenados por sabotagem e sentenciados à prisão perpétua. Um deles, Denis
Goldberg, foi preso em Pretória por ser branco. Os outros foram levados para a
Ilha de Robben.
27
anos de prisão
Mandela
passou 18 anos detido na ilha de Robben, na costa da Cidade do Cabo, e nove na
prisão Pollsmoor, no continente – a transferência ocorreu em 1982. Enquanto
esteve preso, Mandela perdeu sua mãe, que morreu em 1968, e seu filho mais
velho, morto em 1969. Ele não foi autorizado a participar dos funerais.
Durante
o período em que ficou preso, sua reputação como líder negro cresceu e
sedimentou a imagem de liderança do movimento antiapartheid. A partir de 1985,
ele iniciou o diálogo sobre sua libertação com o Partido Nacional, que exigia
que ele não voltasse à luta armada.
Em
2 de fevereiro de 1990, o presidente sul-africano Frederik Willem de Klerk
reinstituiu o Congresso Nacional Africano (CNA). No dia 11 de fevereiro de
1990, Mandela foi solto e, em um evento transmitido mundialmente, disse que
continuaria lutando pela igualdade racial no país.
Prêmio
Nobel e presidência
Em
1991, Mandela foi eleito novamente presidente do CNA. Nelson Mandela e Frederik
de Klerk dividiram o Prêmio Nobel da Paz em 1993, por seus esforços para trazer
a paz ao país. Mandela encabeçou uma série de articulações políticas que
culminaram nas primeiras eleições democráticas e multirraciais do país em 27 de
abril de 1994.
O
CNA ganhou com 62% dos votos, enquanto o Partido Nacional teve 20%. Com o
resultado, Mandela tornou-se o primeiro líder negro do país e também o mais
velho, com 75 anos. Ele tomou posse em 10 de maio de 1994. A gestão do
presidente foi marcada por políticas antiapartheid, reformas sociais e de
saúde.
Em
1996, Mandela se divorciou de Nomzamo Winnie Madikizela por divergências
políticas que se tornaram públicas. Em 1998, no dia de seu 80º aniversário, ele
se casou com Graça Machel, viúva de Samora Machel, antigo presidente
moçambicano.
Em
1999, não se candidatou à reeleição e se aposentou da carreira política. Desde
então, ele passou boa parte de seu tempo em sua casa no vilarejo de Qunu, onde
passou a infância, na província pobre do Cabo Leste. Em 2008, a comemoração de
seu aniversário de 90 anos foi um ato público em seu país e no exterior. Em
novembro de 2009, a ONU anunciou que o dia de seu aniversário seria celebrado
em todo o mundo como o Dia Internacional de Mandela, uma iniciativa para
estimular todos os cidadãos a dedicar 67 minutos a causas sociais - um minuto
por ano que ele dedicou a lutar pela igualdade racial e para o fim do
apartheid.