A obra-prima do diretor Martin Scorsese também questiona as realidades que costumam manifestar de forma mais direta a vocação missionária da Igreja, porque permite vislumbrar a fonte viva e surpreendente da qual pode brotar em qualquer época a missão que Cristo confiou aos seus no Evangelho. Sugere que cada investida missionária não deve gerar fruto por sua própria força, mas precisa confiar a cada instante nos sinais da graça de Cristo.
A reportagem
é de Gianni Valente, redator da Agência Fides, publicada por Omnis Terra, 14-02-2017.
A tradução é
de Luisa Rabolini. Fonte: IHU
Silence não é “apenas” uma obra-prima destinada a deixar
sua marca no cinema dos últimos anos. O filme do diretor estadunidense Martin Scorsese, baseado no romance -
publicado em 1966 - pelo escritor japonês Shusaku Endo, representa um presente
inesperado que deveria ser agradecido por todos aqueles que, de diferentes
maneiras, estão envolvidos na missão apostólica da Igreja. Porque seguindo o
próprio gênio artístico, tanto Scorsese como Shusaku intuem e contam até nos
detalhes mais íntimos e arrebatadores o dinamismo incomparável e único do
empreendimento missionário que adentra o mundo com a promessa do Evangelho. E apresentam sua proposta
para a sensibilidade do nosso tempo com uma eficácia e uma força expressiva que
não são facilmente encontradas nas reflexões missiológicas que costumam
circular entre os “encarregados aos trabalhos”.
O filme e o
livro, que ganha o título a partir do "silêncio" de Deus, acompanham
um evento de quase quatro séculos atrás, ambientado no Japão na época da violenta perseguição contra os cristãos começada
em 1587 com o shogun (general) Hideyoshi
e depois continuada pelo shogun Tokugawa,
a partir de 1614. O cineasta nova-iorquino de origem siciliana, durante a
realização do filme, também se valeu da consultoria histórica dos padres
jesuítas David Collins, historiador da Universidade de Georgetown, e Shinzo
Kawamura, da Sophia University. Nas perseguições do século XVII, um grande
número de fiéis e muitos missionários e sacerdotes locais morreram como
mártires, muitas vezes em decorrência de graves torturas.
O filme gira
em torno da figura do jesuíta português Cristóvão Ferreira, “líder”
das missões católicas no Japão, que enviava cartas inflamadas para a Europa sobre a celebração dos
mártires, narrando indescritíveis torturas capazes de “apavorar até o mais
forte de homens, se não fosse pela graça de Deus”. Até que se espalha a notícia
de que justamente ele, submetido à tortura, teria renegando a fé cristã
tornando-se um apóstata. Dois de seus jovens alunos jesuítas, o português Sebastião Rodrigues e espanhol Francisco Garupe, tendo como guia a
controversa figura de Kichijiro -
um japonês convertido, que foge para Macau
depois de ter também apostatado - vão para o Japão com a missão de verificar se as notícias inquietantes sobre
o seu ex-mestre são verdadeiras, ou se apenas se trata de rumores postos
propositadamente em circulação pelos japoneses ou pelos holandeses para minar o
espírito dos missionários católicos e de seus fiéis. Ao chegar, os dois
jesuítas europeus são literalmente sugados pelas conturbadas vicissitudes da
comunidade cristã japonesa assolada pela fase sangrenta da perseguição. Garupe irá morrer como um mártir,
enquanto o protagonista do romance e do filme, Sebastião Rodrigues, acabará
tornando-se também um apóstata, e irá viver por décadas em uma espécie de
prisão domiciliar até sua morte. Os ritmos às vezes alucinantes e o sombrio
frenesi que dominam grande parte do filme - com passagens de tirar o fôlego,
como todas aquelas que detalham às muitas formas de tortura que padecem os
pobres cristãos japoneses – não deixam espaço a sublimações hagiográficas para
a angústia do sofrimento infligido e suportado sem motivo algum, onde o
terrível momento da dor é vivenciado por mártires mostrados como perdedores,
vítimas de um sacrifício aceito pelo aparente silêncio de Deus.
Precisamente
na desenfreada sequência de eventos e cenários onde tudo parece estar
desmoronando, Scorsese, seguindo fielmente e com originalidade Shusaku, dissemina no filme detalhes e
pequenas pistas que podem questionar até mesmo hoje as realidades que costumam
manifestar mais explicitamente a vocação missionária da Igreja. Porque essas
permitem que se perceba sine glossa a fonte viva e surpreendente de onde pode
florescer a missão que Cristo confia aos seus no Evangelho, e também o traço
genético que desde sempre e para sempre, diferencia a missão confiada à Igreja
de todas as formas de propaganda ideológica, religiosa ou cultural.
Vale a pena
uma análise mais aprofundada sobre algumas dessas passagens e pontos-chave da
narrativa.
Um tesouro para disseminar
Quando os
dois jesuítas em busca de seu mestre-apóstata chegam ao Japão, Scorsese descreve
com detalhes comoventes a alegria dos cristãos “escondido”, felizes por ter
novamente entre eles sacerdotes que podem celebrar a Eucaristia e absolvê-los
dos pecados. Sua “fome” por sacramentos, e até mesmo por imagens e objetos
sagrados, expressa a concretude de uma fé percebida como uma promessa e
experiência inicial de salvação, encontrada em meio a uma condição humana
atroz, de miséria e de padecimento. Quando um jovem casal faz o batismo de seu
bebê, perguntam cheios de alegria para os dois missionários se dessa forma o
seu filho está entrando no Paraíso: eles são imediatamente
"corrigidos" pelos dois jesuítas, pois justamente a condição terrena,
marcada pelo sofrimento e pela maldade dos homens, não é o Paraíso.
No entanto,
com a sua pergunta singela e pulsante de alegre esperança, os dois pais
cristãos - pobres analfabetos desavisados dos tratados de escatologia -
manifestam e confessam estar caminhando na mesma fé dos apóstolos, que
reconhece no batismo o princípio da felicidade eterna prometida por Cristo.
Em cenas que
descrevem seu ministério sacramental, ofertado à noite e na clandestinidade aos
"cristãos escondidos", os dois jovens jesuítas saboreiam a grandeza
da missão para a qual foram chamados. Acreditam que podem ser os únicos a
preservar e alimentar a semente lançada por outros.
No seu
livro, Shusaku Endo descreve com
breves e eficientes acenos que um fator que contribuiu para atrair à nova fé os
pobres agricultores e pescadores das ilhas japonesas foi certamente a doce
caridade dos missionários que os batizaram, os primeiros a tratar os neófitos
com dignidade de homens e mulheres. Mônica,
uma das muitas mártires da narrativa, descrita no romance como uma mulher pobre
com um cheiro repugnante, “falava o seu nome de batismo, como se fosse o único
ornamento que possuísse no mundo”.
O Silêncio de Deus
Todo o
filme, e o livro, vibram com a desorientação causada pela perseguição que
irrompe precisamente contra aqueles que de acordo com a promessa do Evangelho são os abençoados e os
favoritos. Rodrigues não se
conforma em ver que tanto sofrimento atinge apenas as pessoas mais vulneráveis,
só porque acreditaram nas promessas de Cristo. A essas vidas miseráveis e
oprimidas, o encontro com Cristo parece acrescentar apenas mais dor e medo.
Como o Senhor pode permitir isso? Como podem ser impostos fardos tão pesados em
ombros tão frágeis? Às perguntas que o missionário lhe endereça, Deus não
parece responder, “impenetrável como o mar”. Nos sofisticados métodos de
suplício, todos pensados para prolongar ao máximo a agonia dos mártires, até mesmo
a crueldade dos carrascos assume traços que ultrapassam o humano. E para
conduzir a tortura está - como relatado na novela Shusaku Endo, e igualmente aconteceu e acontece ao longo da
história da Igreja - um batizado, o sofisticado e perverso
"inquisidor" Inoue,
que, na época em que a missão católica florescia com toda a exuberância havia
se tornado um cristão “para melhorar a sua posição”.
Terras e povos “incompatíveis” com o cristianismo?
A estratégia
persecutória de Inoue visa transformar em apóstatas os padres aprisionados. Ele
assim acredita “cortar as raízes” da árvore do cristianismo que criou raízes em
terras japonesas, para impelir as massas de agricultores e pescadores
ignorantes a renunciar a sua fé. Mas essa estratégia tem seu fundamento em um
teorema: a fé cristã não pode encontrar o Japão. É destinada desde o início a não dar frutos, para continuar
a ser um corpo estranho nas ilhas do Sol Nascente.
Desta forma,
a história narrada por Shusaku Endo
e agora por Scorsese também
chega a um acordo com a sombra desconsiderada de tantas doutrinas e reflexões
missiológicas: a suspeita atemorizante de que existem terras, contextos e
pessoas onde a semente da anunciação do Evangelho, por sua própria natureza,
não pode e nunca poderá criar raízes. Âmbitos excluídos a priori da
possibilidade de conhecer a verdade cristã. Essa suspeita pode corroer por
dentro cada abordagem confiante nas possibilidades que se abrem para o
testemunho evangélico, quando essa se baseia apenas e somente nos processos,
apesar de tudo necessários, de inculturação. Mas também alimenta em sua raiz
fantasias de oposto teor, ou seja, que a “expansão” do cristianismo só pode
acontecer através da assimilação/ colonização de caráter cultural.
Ferreira,
que antes de apostatar havia desempenhado um grande trabalho apostólico nas
ilhas durante vinte anos, mesmo quando tem que empurrar seu coirmão Rodrigues à apostasia, insiste na
proposição de que no Japão “nossa religião não cria raízes”, e que, mesmo
quando a obra apostólica prosperava e os senhores feudais locais competiam para
construir igrejas e abrir as portas para os missionários, na verdade, os
japoneses “não oravam ao Deus cristão”, porque “distorceram Deus para adequá-lo
ao seu próprio conceito de Deus”. Aliás - acrescenta peremptoriamente Ferreira
no romance de Shusaku Endo – “os japoneses, até hoje, nunca tiveram o conceito
de Deus e jamais o terão”, pois “eles são incapazes de pensar em um conceito de
Deus separado do homem. Eles não podem conceber uma existência que transcende a
do ser humano”.
A Igreja dos lapsos
Além da
teorizada "incapacidade genética" de realidades humanas individuais
ou coletivas para encontrar o Evangelho,
a história que tem fascinado Scorsese
aborda - adentrando os recessos mais íntimos do coração do protagonista Rodrigues - também as muitas
possibilidades de fracasso da missão, a dissipação que parece jogar no
esquecimento até mesmo os testemunhos mais valiosos e comoventes da dedicação
incondicional e desmedida ao anúncio do Evangelho. Os dons da graça dos
sacramentos, concedidas pelo padre Fernandes
e seu coirmão Garupe recaem
sobre uma humanidade que permanece frágil, continua a cair e trair,
especialmente representada por Kichijiro,
personagem fundamental do romance e de sua adaptação para o cinema: um bêbado
preguiçoso e servil que entra na história já como apóstata, e durante o
desenrolar da narrativa vai repetir atos escandalosos de traição e apostasia,
até se tornar cúmplice por covardia pela captura do próprio padre Rodrigues. No
entanto, durante o tempo todo, o jesuíta protagonista continua a atender suas
solicitações para confessar e receber o perdão depois de cada traição.
Kichijiro
será o único a pedir e receber de Rodrigues a absolvição dos pecados em
confissão, mesmo quando esse já está em sua condição final de apóstata e
prisioneiro.
Dessa forma,
Rodrigues atesta a abundância inesgotável e a fonte misteriosa do perdão de
Cristo, que ele próprio vai experimentar até o fim.
Olhando para
as repetidas quedas e traições do fraco Kichijiro,
torna-se fácil lembrar e reconhecer que Jesus confiou sua promessa nas mãos e
nos corações de homens frágeis e capazes de renegá-lo, como aconteceu com o
apóstolo Pedro. Partido com a
ousadia de um missionário chamado para proteger e defender a planta frágil do
cristianismo em terras japonesas, o mesmo padre Rodrigues, quando acaba paralisado diante de seus pobres amigos
condenados à morte, é posto diante de sua impotência, de sua limitação, de suas
traições. Até a da apostasia. A mais escandalosa.
O encontro com Cristo no abismo da apostasia
No entanto,
justamente quando afunda no abismo de apostasia, Rodrigues encontra para sempre
o rosto e o abraço de Cristo. Os perseguidores querem forçá-lo a apostatar com
a chantagem: eles repetem que se cumprir o “gesto formal” de pisar o fumie, a
tabuleta sagrada com a imagem de Cristo, poderá salvar seus amigos do suplício
da morte no poço (onde os condenados eram enfiados de cabeça para baixo,
enquanto por pequenas feridas abertas atrás das orelhas gotículas de sangue
escorriam lentamente, numa longa e terrível agonia). Até mesmo Ferreira, para incentivar seu jovem
ex-aluno a realizar o ato sacrílego, alterna palavras duras e expressões
convincentes ( "Se você apostatar, aqueles pobrezinhos serão removidos do
poço. Será poupado seu sofrimento. Mas você se recusa a fazê-lo porque lhe
aterroriza trair a Igreja. Você tem pavor de se tornar um daqueles que são
considerados a escória da Igreja, como eu. Você se considera mais importante
que eles. Importa-se apenas com a “sua” salvação .... (...)”. Mas a convencer Rodrigues a executar o ato sacrílego
não serão nem Ferreira, nem a piedade para os supliciados e nem os carrascos às
ordens de Inoue: é o próprio
Jesus, que da tabuinha preparada para ser pisoteada pelos pés de Rodrigues
fala, convida-o a confiar nele e colocar o pé no rosto de seu Redentor, com
palavras que tocam de forma palpitante o dinamismo misterioso e incomparável da
salvação operada pelo Filho de Deus: “Pisa! Pisa! Mais do que ninguém eu sei
como está cheio de dor o teu pé. Pisa! Para ser pisado pelos homens, eu vim a
esse mundo. Para compartilhar a dor dos homens, eu carreguei a cruz”.
No exato
momento em que ele o renega, Rodrigues
coloca-se totalmente nas mãos do próprio Cristo, impossibilitado agora de
reivindicar qualquer crédito para si mesmo. Com essa visão poderosa e arrebatadora,
os dois artistas modernos, Shusaku
e Scorsese, têm a intuição e
sugerem também que cada investida missionária da Igreja que tenha a pretensão
de se realizar em regime de auto-suficiência, sem depender a todo momento dos
atos de graça de Cristo, destina-se a longo prazo a se transformar em miragem
de poder e de auto-ocupação para os aparatos clericais. Pois nenhuma
"animação missionária" pode pretender trazer frutos duradouros de
salvação por força própria.
Rodrigues, transformado em Apóstata - como zombam até mesmo as crianças de Nagasaki - termina a sua vida de
derrotado em uma gaiola dourada, a “residência dos cristãos”, com um nome e uma
esposa japoneses impostos por seus perseguidores. Mas durante as longas décadas
de vida como recluso, pontuadas por verificações periódicas feitas por seus
carcereiros para verificar se ele e as pessoas que lhe são próximas perseveram
na negação da fé cristã, ele vive no íntimo de seu coração a sua vitória
secreta: nunca mais irá celebrar uma missa, ler o Evangelho, orar em voz alta. Mas vários detalhes (que aqui não serão
revelados, para não “estragar” a surpresa de quem eventualmente for assistir a
essa obra-prima) sugerem que o próprio Cristo continua até o fim a consolar e
confortar o coração do padre apóstata, cristão “escondido”. O amor perseverante
de Cristo também preservou a tocante perseverança final, dissimulada, mas real,
do jesuíta Rodrigues, "Sacerdos in aeternum".
Mesmo fora
dos eventos acompanhados pela arte de Scorsese,
a marca historicamente visível daquela "vitória" que permaneceu
escondida no coração de Rodrigues
e dos muitos japoneses batizados irá se manifestar nas comunidades de “cristãos
escondidos” que os missionários europeus encontraram nas ilhas do Japão, quando puderam retornar para lá
um século mais tarde. Aqueles mesmos de quem o Papa Francisco tantas vezes falou, dedicando-lhes inclusive uma
carta, em março de 2015, para mostrar que as "raízes" da Igreja não
podem ser cortadas quando são nutridas pela fonte viva da graça de Cristo:
“Sobreviveram com a graça de seu Batismo! Isto é grande: o Povo de Deus
transmite a fé, batiza os seus filhos e segue adiante. E mantiveram, em
segredo, um forte espírito comunitário, porque o Batismo lhes tinha feito
converter-se em um só corpo em Cristo: estavam isolados e ocultos, mas sempre
foram membros do Povo de Deus, membros da Igreja”.
(Papa Francisco,
Carta ao enviado especial para a celebração do 150º aniversário da descoberta
dos "cristãos escondidos do Japão" (Nagasaki, 14-17 de março de 2015/São Paulo 2017).
O relato do filme já é muito impactante e surpreendente. Havia lido alguns comentários e análises de críticos cinematográficos, mas acredito que só após assistir o filme e ler o livro, será possível captar as muitas nuances contidas em obras dessa magnitude!
ResponderExcluirPe.Paulo gostei muito do relato sobre o filme SILENCIO DE Martin Scorsese. Estou curiosa para assistir esse filme.Parece ser realmente uma obra prima.
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