19 DE JUNHO/2011: DIA NACIONAL DO MIGRANTE

Da migração forçada à caminhada gratuita

Portinari, Migrantes
O Dia Internacional dos Migrantes, que parte do calendário oficial da ONU, é o dia 18 de Dezembro. Essa data lembra o dia da adoção da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (resolução 45/158 da Assembleia-Geral das Nações Unidas). No Brasil celebramos no dia 19 de junho o Dia Nacional do Migrante com vários eventos organizados pela Pastoral do Migrante.
A migração é resultado de um mundo fragmentado por grandes desigualdades materiais e sociais. Refletir a causa dos migrantes e refuguados permite analisar dois processos opostos: um emerge da desigualdade, enquanto o outro procura contribuir para superar a razão de ser da migração, a desigualdade.

Desigualdade criminosa

177 imigrantes interceptados
pela guarda costeira italiana
O primeiro é imposto pelo capitalismo, cuja configuração neoliberal induz indivíduos e grupos sociais a migrar para grandes cidades ou países do Norte, em busca de trabalho e sobrevivência. Mas, também nas grandes cidades grupos cada vez maiores perdem trabalho, casa e território. A crise da urbanização latino-americana causa novas ondas migratórias. O mundo neoliberal, movido pela hegemonia dos mercados e sua avaliação da atividade humana meramente sob o aspecto de custos e benefícios, gira em torno de uma lógica de desterritorialização.

Nesta lógica, identidades construídas a partir de territórios com fronteiras e soberanias espaciais, atrasam, complicam e encarecem a atividade econômica. O neoliberalismo globalizado configura um mundo sem fronteiras para o fluxo dos capitais e de competição generalizada. Ao lado do mercado de trabalho e de bens, surge o mercado dos servidos sociais, o do lazer, da escola, da saúde e do transporte, que se tornaram igualmente mundos de competição, de corrupção e violência. Na raiz da violência sem fronteiras, que repercute na violência contra os migrantes, está a lei do mais forte de um novo darwinismo socioeconômico.

Igualdade em construção

O segundo processo emerge da prática do peregrino de Nazaré, que se fez Caminho. Os cristãos realizam Seu projeto na caminhada. O "ser caminho" liberta da ansiedade e da pressão competitiva da chegada. O caminhar dos cristãos está marcado pela urgência do aqui e agora, e pela misericórdia para com os mais lentos. O sofrimento do pobre não permite atrasos burocráticos. A caminhada não produz feitorias contabilizáveis, mas "relações", "diálogo", "abertura" e um "coração ardente", que mudam a realidade.

Na origem da migração está uma violência imposta; na origem da caminhada está uma opção pela gratuidade.

Desafios da caminhada

É possível articular a alienação da terra perdida com a libertação do desejo de "possuir terra"? Perda e posse não são dois lados da mesma moeda? Quem trabalha com o mundo dos migrantes certamente já se perguntou se existe a possibilidade de vincular honestamente migração, caminhada e peregrinação. Existe a possibilidade de forjar, no interior da migração imposta, a força espiritual do homo viator? A mística da peregrinação não se tornaria, neste caso, uma justificativa da violência que os migrantes sofrem?

O campo religioso não dispõe de soluções para os migrantes, que possam dispensar as lutas políticas e a assunção da modernidade como limite e horizonte do "estar no mundo". Um fundamentalismo pré-moderno, por exemplo, propenso a substituir a ordem democrática, constitucional e racional por condutas autoritárias ou apelos fundamentalistas aos santos de casa, certamente, não pode oferecer soluções históricas. A libertação do estado da tutela clerical e a libertação da religião da instrumentalização política e econômica, hoje, são pressupostos de qualquer reflexão adulta.

A partir do evangelho, porém, temos sonhos de um convívio social, que propõem prioridades e opções políticas, que questionam radicalmente o grande relato da "desigualdade natural" do mercado. A luta por justiça se apoia nas conquistas da modernidade. Para os cristãos, a derrota do reino da necessidade e a recuperação de um espaço alternativo de não mercado e gratuidade são possíveis. Esse espaço está configurado na gratuidade da cruz de Jesus de Nazaré. A partir da cruz, o cristianismo não só dispensa outros sacrifícios redentores, mas ativamente rejeita todo poder que sacrifica vítimas humanas. A cruz é o último sacrifício com o "aval" de Deus. O "sacrifício" pós-pascoal é "memória", "ação de graças" (Eucaristia) e "solidariedade com os sacrificados" até os confins do mundo.

Aprender dos migrantes

Os migrantes, como portadores do evangelho do caminho, advertem as comunidades cristãs para os perigos que decorrem da domesticação, do sedentarismo e da adaptação aos modismos. Uma Igreja instalada sempre cairá nas malhas de estruturas pesadas e doutrinas complicadas que aprisionam o Espírito. Uma Igreja a caminho é uma Igreja simples e transparente. A mediação do caminho para a “vida em abundância” acontece no "enredo" de solidariedade com as vítimas. O espaço da gratuidade é delineado pela solidariedade desinteressada. A partir da libertação na cruz, compreendemos também a encarnação de Jesus de Nazaré como modelo de solidariedade e impulso de transformação.

Os migrantes não procuram voltar para a pátria com as mesmas estruturas que os excluiu. Se a migração não tivesse uma força transformadora sobre aqueles mecanismos que a produziram, ela seria apenas uma fuga sem fim. Na própria migração encontram-se os antídotos contra a reprodução daqueles mecanismos que reforçam a escuridão arcaica e as ambivalências da modernidade, a ambição pela propriedade individual que destrói as relações humanas. A migração inspirada pela caminhada aponta para novas relações humanas, a partir de uma nova visão do mundo.

Do Nordeste ao Canavial Paulistano
Também o peregrino não quer possuir o "objeto" de seu desejo, que é Deus; quer vê-lo face a face. A radical alteridade de Deus possibilita o reconhecimento da alteridade do outro. O "desejo missionário" não procura uma propriedade, mas uma alteridade reveladora, que está na brisa suave do caminho, no brilho dos olhos tristes e alegres do pobre, na caminhada despojada. O caminho, a relação e os pobres são lugares da experiência de Deus e da opção pelos pobres.

Migrantes Nordestinos
Os migrantes lembram às comunidades cristãs que caminhar é a forma mais radical da partilha. No desapego do caminho está a plenitude da missão, porque a plenitude não está na posse de coisas, mas no acesso à rede social e à casa maior, que é a natureza. Importante é ter "acesso à rede". De qualquer lugar podemos ter acesso à rede da gratuidade e partilha, que questiona a acumulação, à rede da proximidade, que contesta a indiferença e a exclusão, e à rede da universalidade que contracena com a globalização restritiva. O Reino de Deus é semelhante a uma rede lançada ao ar.

Paulo Suess

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