Recuperar ou transformar?
Vigilantes da Justiça da Ressurreição
Vigilantes da Justiça da Ressurreição
Assisti, na Faculdade de Saúde Pública da USP, à “Plenária de Encerramento” do VII Colóquio de Psicopatologia e Saúde Pública integrado, num I Colóquio Internacional sobre “Invenções Democráticas em Interação” (8.-10.4.2011). O evento reuniu reflexões sobre movimentos cujas bandeiras são educação democrática, economia solidária, justiça restaurativa e psicopatologia para a saúde pública.
Ana Maria Fernández, professora de Teoria e Técnica de Grupos, relatou experiências entre os kolla, povo indígena que se encontra na Argentina, no Chile e na Bolívia. Sua economia, na base da troca de bens (escambo) e por não passar pelas exigências de compra e venda do mercado, tem todas as condições para ser solidária. Em seguida, Fernández descreveu, com poucas pinceladas, a alegria dos operários que conseguiram, em regime de autogestão, recuperar fábricas falidas. Na Argentina funcionam cerca de 300 dessas “recuperadas” da mão do patrão, mas não das garras do capital. Recuperaram o controle de gestão e produção, mas logo sentiram as pressões sistêmicas do mercado mundial e perceberam, que a “recuperada” os inseriu, novamente, no sistema concorrencial de produtividade e exploração laboral.
Usina Catende: Greve na Recuperada |
Algo semelhante ocorreu com a Usina Catende, localizada na região da Mata Sul Pernambucana. A usina faliu, há 18 anos, e foi assumida pelos próprios cortadores de cana. No início de 2011, a notícia de trabalho escravo, na Usina Catende, percorreu o país. Voltaram as figuras centenárias do senhor de engenho, agora representado por lideranças jovens de ex-cortadores de cana, e do trabalhador em condições semelhantes à escravidão. O conluio da corrupção dos novos líderes, da falta de produtividade, do atraso no pagamento de salários e das condições precárias de trabalho desencadeou, no início de fevereiro, greves e paralisações. As “recuperadas” e as mais de 20 mil empresas de autogestão no Brasil não transformaram os operários em produtores livres, mas em administradores de sua própria alienação.
Tarsila do Amaral: Operários |
Perguntei-me, durante o Colóquio, sobre o porquê da ausência da voz da Igreja nesse diálogo. Ela poderia aprender nesses debates inquietos como assentar a sua mensagem em contextos sociais e traduzi-la em linguagens inteligíveis. Com seu aguilhão antissistêmico do Reino, poderia apontar para um horizonte além do capital, insistir na superação do trabalho alienado, pisar no freio de emergência de um desenvolvimento de produtos descartáveis e, destarte, libertar a sua própria reflexão ainda presa num emaranhado de conveniências institucionais e autoritarismo patriarcal.
Recuperação - um processo aberto
A Igreja pós-conciliar, em seu conjunto, passou por processos semelhantes às fábricas recuperadas pelos operários. Sinais desta recuperação pelos operários eclesiais, os fiéis e o povo de Deus, em seu conjunto, não faltam. Criaram-se, nos primeiros momentos pós-conciliares, Sínodos Universais, Assembleias Regionais do Povo de Deus, Conselhos Paroquiais com mandato para tomar decisões. Havia consultas prévias, respeitadas, para as nomeações dos bispos, estilos eclesiais menos pomposos, opção pelos pobres, teologias e pastorais inseridas nos contextos. Era o espírito do “Pacto das Catacumbas” (ver o texto na coluna ao lado), que se realizou apenas em pequenos enclaves eclesiais.
Durante o papado de João Paulo II, que impressionou como ator político e figura humana, a maior parte dessas iniciativas foi reduzida a formalismos burocráticos ou dinâmicas de grupo, sem espaços reais para as bases leigas da Igreja ou para o exercício da diversidade. No chamado “Sínodo das Américas” (1997) assisti de perto a tais dinâmicas. Temas proibidos impossibilitaram o diálogo. Vivemos, desde a era Wojtyla, uma espécie de peronismo light. O estilo de um líder, cujo carisma é bem cuidado nas aparições públicas, torna-se modelo. Sua áurea de santidade assegura autorelevância institucional e blindagem doutrinal de questões secundárias, muito além da infalibilidade dogmática definida. Mas, a santidade pessoal não garante a ortodoxia pública nem o bom senso nas decisões administrativas. Temos, como exemplo, o antimodernismo de Pio X, que causou muito sofrimento desnecessário. Hoje, praticamente, é uma vergonha para um papa, não ser canonizado.
Na Igreja Católica aconteceu algo comparável ao ocorrido na Usina Catende, recuperada pelos operários e logo, novamente, recuperada pelo espírito patronal. No Vaticano II, a Igreja deu sinais de recuperação da modernidade e de participação do povo de Deus e dos pobres. Já na época pós-Medellín, o engenho eclesial foi novamente recuperado pelos antigos donos, pela volta à pré-modernidade e seus modelos caducados de santidade e autoridade. Mas, o discurso do Reino é insustentável num regime que despreza a liberdade de expressão e a participação gerencial, num regime que foge, em nome da universalidade de sua proposta, da contextualização de sua mensagem e do reconhecimento incondicional do Outro.
Ocorre que a história do mundo não é linear. A recuperação da Igreja pelos seus operários, que são as samaritanas e os pobres, acontece num constante vaivém. Embaixo dos tapetes oficiais há energia inovadora represada que, sempre de novo, será administrada pelos pobres e os outros, que são os bem-aventurados de Jesus. Eles vêm da grande aflição e lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro. Eles são os vigilantes do Reino, os zeladores não apenas da recuperação, mas da transformação. Transformação significa: Justiça da Ressurreição. Seu sofrimento e sua solidariedade interrompem, por instantes, os discursos autorizados e descortinam a neblina da alienação. Enquanto a palavra de ordem na Usina Catende pós-greve, “A Usina para os Operários e as Terras para os Camponeses Pobres”, abre uma nova dicotomia estrutural, a palavra de ordem da Igreja, recuperada pelos pequenos, será a ordem de Jesus histórico e do Cristo Ressuscitado: Não tenhais medo! O Reino será dos perseguidos por causa da justiça e os mansos possuirão a terra.
Paulo Suess
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