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Provocar rupturas, construir o Reino: Vicente Cañas SJ: Fragmentos de seu martírio


Memória do mártir Vicente Cañas 
(assassinado em 6 de abril de1987)



Paulo Suess
         O colaborador do Reino, necessariamente, será um provocador de rupturas. Vicente Cañas foi este colaborador da causa maior do Reino, que irrompeu de sua opção pela causa dos povos indígenas. Mas Vicente foi também esse provocador que rompeu com missões sobreviventes do sistema colonial e com sistemas econômicos que matam. Como poderia ser diferente se ele penhorou a sua vida na luta gigante contra a morte? As vítimas são lugar da epifania de Deus. O que alguns queriam interpretar como incompatibilidade de temperamento era e continua sendo uma incompatibilidade de sistema. Até hoje, a luta pela vida dos povos indígenas é uma questão da ortodoxia da Igreja, e não apenas a luta por uma questão social. Pecado não é apenas “matar índios” ou explorá-los. “Pecado” significa também indiferença diante das ameaças de sua causa pelos três poderes, ingenuidade de parcerias e indigenismo de gabinete.
         Companheiros de ontem, que estavam ao lado de Vicente, hoje se adaptaram, surfando em ondas altas subvencionadas pelo sistema que matou o missionário. Outros, 30 anos atrás, na hora do assassinato, ainda estavam arredios ao estilo radical de Vicente Cañas. Entrementes, se aproximaram. Pediram carona e perdão. Se converteram. Deus seja louvado!
         A vida missionária de Vicente se realizou na transição tardia do sistema colonial ao tempo pós-vaticano. Não se trata de uma transição linear. Diferentes setores eclesiais se combateram pela hegemonia na condução dos processos de interpretação entre Teologias da Caridade, da Prosperidade, do Pentecostalismo e da Libertação.
         Duas racionalidades
     Duas racionalidades estavam em jogo: a racionalidade ocidental e uma racionalidade a partir do mundo dos pobres e de múltiplas colorações culturais. A racionalidade ocidental, em sua forma de zelo pelo bom aproveitamento do tempo, quer dizer, da aceleração dos processos de trabalho e produção, adquiriu, no cristianismo, o estatuto de uma virtude. A virtude dessa racionalidade recomenda reservas (poupança e acumulação) e pressa, porque a generosidade da natureza pode falhar e a vida é curta. O tempo economizado deve ser gasto com virtude, portanto, com trabalho, economia e oração. A preguiça é a mãe de todos os vícios e trabalhar significa participar na criação do mundo novo. Portanto, a tarefa da missão era incentivar trabalho e oração. Aplicar os bens economizados significa investí-los, diligentemente, e aumentá-los.
         Onde aplicar os bens economizados? Na construção de templos, na riqueza da Igreja, na missão e nos pobres. Mas os pobres e os excluídos são produtos desta economia. Assim a ética ocidental faz parte de um círculo vicioso e a juventude missionária da época mostrou-se, mais que muitas missões tradicionais, capaz de conviver despojadamente com os povos indígenas e romper amarras estruturais. Tornaram-se fatores de inquietação em suas casas religiosas e Igrejas locais. Recusaram-se a viver o seguimento de Jesus engessados por virtudes secundárias da pequena burguesia como pontualidade, parcimônia, obediência e limpeza, virtudes que servem para garantir o bom andamento de qualquer aparato repressivo. Aceitaram essas virtudes secundárias somente a serviço de outras virtudes como justiça, solidariedade, tolerância, simplicidade, despojamento e caridade em prol, não de almas, mas da vida de pessoas concretas ameaçadas.
         Também Vicente Cañas encontrava na defesa da vida dos povos indígenas protagonizada pelo Cimi o lugar que dava sentido à sua vida. A racionalidade ocidental desequilibrou a mensagem evangélica e a Missão desequilibrou, pela proposta de um novo bem-viver para todos, a racionalidade, a ética, o bem-estar e a lógica ocidental. Achava-se por muito tempo, que as promessas da missão - ordem, trabalho e sabedoria ocidental - produzissem progresso. Produziram entulho colonial, porque o progresso nunca era para os colonizados. Destruiu o mais valioso que os povos indígenas tinham para oferecer ao cristianismo: a igualdade que emergiu da festa e a liberdade entre iguais.
         A festa
      A festa, na maioria das culturas indígenas, é o centro da economia de reciprocidade. Trabalho só faz sentido sendo realizado em função e a partir da festa. Quando os missionários proibiram as festas dos indios, cujos “desperdícios” não corresponderam à virtude da racionalidade ocidental, os índios se recusaram a trabalhar e a fome se espalhou pelas aldeias. A proibição da festa era o início da acumulação. “`Pobre´, para os povos Guarani, é aquele que não pode praticar a reciprocidade das mãos abertas”, nos dizia o padre Melià. “`Pecador´ é aquele que não quer praticar a reciprocidade porque produz para acumular, e ao acumular, impede a realização da festa”.

         Diante da proposta do bem-viver dos povos indígenas, a luta de Vicente Cañas e de tantos outros missionários e missionárias tem um sentido profundo e se torna relevante para todas as sociedades. Muitos povos indígenas conseguiram até hoje reproduzir sociedades igualitárias. Qual é o segredo destas sociedades? Nenhum segredo, nenhuma magia, apenas outras prioridades: o investimento nas pessoas e na educação para a igualdade e para a partilha em vez de uma educação para a inserção no mercado concorrencial dos bens e do trabalho.
         A vida de Vicente Cañas é uma advertência. O cristianismo pode ter as qualidades de um pharmakon que significa na língua de Sócrates, “remédio” e “veneno”. A religião pode ser “religião do mercado” para acumular mercadorias e “religião do sagrado”, para defender a vida. Carregamos os tesouros de Deus em vasos de barro. Vicente deu a sua vida pelos Enawenê Nawê na Igreja que procura ser “companheira de caminho” (DAp 396) dos índios e “casa dos pobres” (DAp 8, 524), segundo a proposta do “Documento de Aparecida” (2007).
         Itinerário de Vicente Cañas
        Vicente Cañas nasceu na Espanha, mas sua verdadeira nacionalidade era Enawenê Nawê. Os que o conheceram de perto contam que Vicente herdou de seu pai o sonho revolucionário e a audácia de seu temperamento. Entrou na Companhia de Jesus, em 1961, e viveu ao longo de sua vida religiosa a radicalidade de uma vocação que culminou no martírio. Não facilitou esse martírio, nem aos seus inimigos nem aos seus amigos nem a si mesmo.
         Ao chegar no Brasil, em 1966, Vicente viveu algum tempo no Ceará e logo foi enviado ao Mato Grosso, à Missão Anchieta, em Diamantino. Seu batismo de fogo e sangue aconteceu em 1969, por ocasião de uma expedição da Funai aos chamados Beiço de Pau (Tapayuna) que habitavam entre os rios do Sangue e Arinos, no norte de Mato Grosso. Esse grupo indígena, que contava com mais de 600 índios, ficou reduzido a 41, devido a uma gripe transmitida pela equipe da Funai. O Padre Antonio Iasi, da Missão Anchieta, que havia iniciado os primeiros contatos com os Beiço de Pau, foi chamado às pressas para salvar o restante daquele povo. Iasi convidou Vicente para ajudá-lo a cuidar da saúde dos sobreviventes. De outubro de 1969 a abril do ano seguinte, Vicente viveu com os Beiço de Pau, transferidos em maio para o Parque do Xingu.
         Tempos depois, Vicente Cañas conviveu por cinco anos com o povo Pareci, no noroeste de Mato Grosso. Nesse período, em 1971, participou do primeiro contato com o povo Myky, na época apenas 23 pessoas. Em 1974, participou dos primeiros contatos com os Enawenê Nawê, no rio Juruena, com uma população de cem pessoas, às quais dedicou os próximos anos de sua vida. Participava dos seus trabalhos e rituais, era enfermeiro, dentista, mecânico, pescador e cozinheiro. No decorrer dos anos, os Enawenê Nawê consideravam Vicente como um deles. Em seu Diário descreve minuciosamente os costumes culturais dos Enawenê Nawê.
         Por causa do interesse de fazendeiros e madeireiros que viam em Vicente um empecilho aos seus negócios, Cañas sabia que estava jurado de morte. Ele mesmo chegou a comentar com os companheiros: “Não estranhem se um dia vocês me encontrarem morto”. Os próprios índios o haviam alertado: “Te cuida. As picadas dos jagunços já estão perto do teu barraco”. No processo, que 10 anos mais tarde, em 1996, levaria à demarcação do território dos Enawenê Nawê, Cañas foi assassinado. Só um mês depois de sua morte, ocorrida no início de abril de 1987, o corpo mumificado foi encontrado, adornado com os colares, as braçadeiras e pulseiras dos Enawenê Nawê.
         Depois de ser periciado pelo Instituto Médico Legal (IML) do Estado de Mato Grosso, o crânio do missionário foi enviado para novas perícias ao IML do Estado de Minas Gerais. De lá, em 1989, o crânio do Ir. Vicente desapareceu misteriosamente. Depois foi encontrado por um engraxate de sapatos, numa caixinha que declarava seu conteúdo, perto da rodoviária de Belo Horizonte, fato até hoje não explicado.
        Por causa do assassinato de Vicente Cañas foram indiciados os fazendeiros Pedro Chiquette e Carlos Camilo Obici, o ex-delegado da polícia civil na cidade de Juína (MT), Ronaldo Antônio Osmar, na ação penal apontado como um dos mandantes do crime, e o Martinez Abadio e José Vicente como executores do crime. Até hoje, nenhuma condenação.
         Apoio institucional e travas institucionais
       O martírio de Vicente Cañas estava respaldado pela reorientação de sua ordem religiosa. Na época em que se iniciou em sua missão indigenista (1974/1975), 200 representantes da Ordem dos Jesuítas estavam reunidos, em Roma, na sua 32ª Congregação Geral (CG). Um dos delegados era Mário Jorge Bergoglio, então Provincial dos Jesuítas da Argentina e hoje Papa Francisco. No célebre Decreto Quarto, essa CG assumiu, seguindo Medellín (1968), como prioridade apostólica o anúncio da fé e a promoção da justiça: “A missão da Companhia de Jesus é o serviço da fé, da qual a promoção da justiça é uma exigência absoluta” (CG XXXII, D. 4, n.2). Não há verdadeira fé cristã sem preocupação com justas relações humanas e justas relações humanas têm sua base no anúncio de Jesus Cristo e sua mensagem de reconciliação. O Geral advertiu à assembleia de que essa escolha traria para a Companhia novos adversários e mártires. De fato, de 1973 a 2006, morreram 48 jesuítas em missão por morte violenta. O pobre Irmão Vicente, que procurou viver a sua fé na prática da religião dos Enawenê Nawê, era um deles.
         Arquitetura da fé
        Na arquitetura da fé, o martírio é uma singularidade histórica. Por isso, a Igreja nunca definiu o martírio como “normalidade” da vida cristã. Também num estado de injustiça e nas frestas de um sistemas de alienação é possível viver a vida – na luta aberta e na resistência clandestina. A militância, porém, se entrelaça com a mística, com mansidão e esperança, como São Pedro pediu no início da era cristã: “Estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que a pedir. Fazei-o, porém, com mansidão e respeito e com boa consciência” (Pd 3,15s). Não nos é permitido, em nome do Evangelho, eliminar a vida falsa com violência, a não ser pelo preço de inquisições e zelotismos. A “vida certa” é vivida entre dois extremos: a luta armada, que pretende eliminar com violência os inimigos da “vida certa”, e a resignação depressiva, que espera a morte debaixo de um junípero, como o profeta Elias (cf. 1Rs 19,4).
     O martírio aponta para o núcleo da esperança de uma causa aparentemente perdida, de uma causa que na última instância e antecipadamente recebeu o veredito de Deus fiel e justo: serás livre e tua causa viverá. Faz tempo que o território dos Enawenê Nawê foi demarcado. Em regimes desencontrados na contramão do Reino, essas demarcações, porém, sempre serão vitórias parciais, sinais da vida maior no horizonte escatológico ainda não plenamente realizável.


[Esses “fragmentos” foram recentemente publicados no blog do autor e em: E. Heck/P. Suess (orgs.), Provocar rupturas, construir o Reino. Memória, martírio e missão de Vicente Cañas, São Paulo, Loyola, 2017].

O sangue de Meruri: O martírio de Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo há 40 anos

TRANSFORMAÇÃO DO PARADIGMA MISSIONÁRIO
O martírio de Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo (1976-2016)
Paulo Suess
            O Papa Francisco recupera passo a passo o significado da catolicidade da Igreja que é ser universalmente um sinal de contradição. Ao mesmo tempo que ele rompe com muitos traços do provincialismo eclesiástico de inspiração eurocêntrica, fortalece as Igrejas locais e o princípio da sinodalidade. Essa atenção para o mundo local e para a diversidade nas microestruturas é um contraponto para a globalização uniformizada das mercadorias e da mídia de um sistema que não simplesmente explora e oprime, mas mata (cf. EG 53). Pela sua necessidade de crescimento e acumulação esse sistema matou também o missionário Lunkenbein e seu defensor, o Bororo Simão Cristino, e continua matando até hoje as lideranças indígenas.

1. Novo paradigma missionário
           
15.07.1976: Velório em Meruri/MT
               O Concílio Vaticano II (1962-1965) ajudou na reformulação do trabalho missionário junto aos povos indígenas e a todos os setores, vítimas de exploração, exclusão e desigualdade social. Na sua segunda vinda ao Brasil, em 1970, o missionário Rodolfo não veio mais para salvar as almas dos Bororo no interior de um projeto desenvolvimentista e assimilacionista, mas para propor o resgate de suas vidas e contribuir para a construção de uma perspectiva de esperança. Muitos jovens, leigos e religiosos, lutaram para colocar em prática esse novo paradigma da missão em suas Igrejas locais, Congregações e na construção dos rumos pastorais do próprio Cimi.
            O Cimi, fundado em 23 de abril de 1972, aprendeu do magistério latino-americano pós-conciliar que a missão não pode servir a dois senhores. A geração dos jovens que foi para as aldeias indígenas recusou-se a viver o seguimento, engessado por virtudes secundárias da pequena burguesia como pontualidade, parcimônia, obediência e limpeza. Aceitaram essas virtudes secundárias somente a serviço de outras virtudes maiores como justiça, solidariedade, tolerância, simplicidade e despojamento em prol da vida ameaçada dos povos indígenas. Essa geração pós-conciliar contrariou os interesses do latifúndio, do grande capital e do modelo de desenvolvimento implantado no país. Por não caber em sistemas uniformizados de competição e crescimento que visam lucro e poder, a causa indígena é um sinal de contradição e a história dos seus defensores é marcada por assassinatos ou, recentemente, por CPI´s para despistar a atenção da sociedade brasileira dos verdadeiros problemas.

2. Primeiros passos rumo à Missão
           
             Rodolfo Lunkenbein (1939-1976), alemão de nascimento, salesiano por opção e, com a graça de Deus, mártir em terras indígenas, foi, pelas duas estadias em épocas diferentes no Brasil, um missionário pré e pós-conciliar. Nascera como filho de pequenos lavradores no dia 1º de abril de 1939, em Döringstadt, no sul da Alemanha. Depois de descobrir uma biografia de Dom Bosco, com 11 anos, queria estudar no internato salesiano de Bamberg. A família não tinha os recursos para custear o sonho do filho, que queria ser missionário. Finalmente, pela mediação do pároco, já com 14 anos de idade, em 1953, foi aceito no aspirantado de Buxheim, onde foi aluno do colégio Marianum de 1952 a 1958. Os que conheciam “Lunke”, como foi chamado pelos colegas da escola, o descrevem como um jovem alegre, aberto, piedoso.
            Em 1958, o novo inspetor salesiano do Mato Grosso trouxe de sua terra natal, da Alemanha, um grupo de jovens missionários e seminaristas ao Brasil, entre os quais se encontrava Lunkenbein, que logo no ano seguinte fez seu noviciado em Pindamonhangaba (SP). Seguiram os estudos de filosofia e formação salesiana em Campo Grande (1960/1962). Entre 1963 e 1965 foi destinado para a Missão Salesiana de Meruri/MT, onde fez seus anos práticos como professor e educador com aulas para as crianças dos Bororo, dos fazendeiros e dos posseiros da região. Ainda encontrou tempo para mostrar suas habilidades para consertar motores e máquinas da missão, símbolos do progresso civilizatório e da missão desenvolvimentista.
            Ninguém falava ainda de demarcação da terra dos Bororo, os mesmos Bororo que Claude Lévi-Strauss, 40 anos antes tinha visitado. O antropólogo ilustre dedica elogios generosos e críticas severas à Missão Salesiana da época. Elogios, por ter junto com o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) conseguido acabar com os conflitos entre índios e colonos e por ter realizado “excelentes pesquisas etnográficas”. Críticas, ao chamar a atividade missionária dos discípulos de Dom Bosco “um empreendimento de extermínio metódico da cultura indígena”. Lévi-Strauss, que entre 1935 e 1939 era professor de sociologia na Universidade de São Paulo (USP), admite que esse extermínio não foi completo. Conta o antropólogo, que seu intérprete e principal informante na aldeia de Kejari, tempos antes tinha sido levado pelos missionários à Roma. Foi apresentado ao Papa por causa de suas habilidades bilíngues que demonstrariam o sucesso catequético da missão. Mas, depois do retorno à sua aldeia, conta o professor, o índio sofreu “uma crise espiritual, da qual se saiu reconquistado pelo velho ideal bororo: foi instalar-se em Kejari, onde desde há dez ou quinze anos, seguia uma vida exemplar de selvagem. Inteiramente nu, pintado de vermelho, com o nariz e o lábio inferior trespassados pela pequena barra e um adorno labial, o índio do Papa revelou-se como um maravilhoso professor de sociologia bororo” (Lévi-Strauss, p. 203). O antropólogo da França, pelo seu livro “Tristes Trópicos”, deu fama aos Bororo, o missionário da Alemanha ajudou na recuperação de seu território e deu a sua vida.