O sangue de Meruri: O martírio de Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo há 40 anos
TRANSFORMAÇÃO DO
PARADIGMA MISSIONÁRIO
O
martírio de Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo (1976-2016)
Paulo
Suess
O
Papa Francisco recupera passo a passo o significado da catolicidade da Igreja
que é ser universalmente um sinal de contradição. Ao mesmo tempo que ele rompe com
muitos traços do provincialismo eclesiástico de inspiração eurocêntrica,
fortalece as Igrejas locais e o princípio da sinodalidade. Essa atenção para o
mundo local e para a diversidade nas microestruturas é um contraponto para a
globalização uniformizada das mercadorias e da mídia de um sistema que não
simplesmente explora e oprime, mas mata (cf. EG 53). Pela sua necessidade de
crescimento e acumulação esse sistema matou também o missionário Lunkenbein e
seu defensor, o Bororo Simão Cristino, e continua matando até hoje as
lideranças indígenas.
1.
Novo paradigma missionário
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15.07.1976: Velório em Meruri/MT |
O
Concílio Vaticano II (1962-1965) ajudou na reformulação do trabalho missionário
junto aos povos indígenas e a todos os setores, vítimas de exploração, exclusão
e desigualdade social. Na sua segunda vinda ao Brasil, em 1970, o missionário
Rodolfo não veio mais para salvar as almas dos Bororo no interior de um projeto
desenvolvimentista e assimilacionista, mas para propor o resgate de suas vidas
e contribuir para a construção de uma perspectiva de esperança. Muitos jovens,
leigos e religiosos, lutaram para colocar em prática esse novo paradigma da
missão em suas Igrejas locais, Congregações e na construção dos rumos pastorais
do próprio Cimi.
O
Cimi, fundado em 23 de abril de 1972, aprendeu do magistério latino-americano pós-conciliar
que a missão não pode servir a dois senhores. A geração dos jovens que foi para
as aldeias indígenas recusou-se a viver o seguimento, engessado por virtudes
secundárias da pequena burguesia como pontualidade, parcimônia, obediência e
limpeza. Aceitaram essas virtudes secundárias somente a serviço de outras virtudes
maiores como justiça, solidariedade, tolerância, simplicidade e despojamento em
prol da vida ameaçada dos povos indígenas. Essa geração pós-conciliar contrariou
os interesses do latifúndio, do grande capital e do modelo de desenvolvimento
implantado no país. Por não caber em sistemas uniformizados de competição e
crescimento que visam lucro e poder, a causa indígena é um sinal de contradição
e a história dos seus defensores é marcada por assassinatos ou, recentemente,
por CPI´s para despistar a atenção da sociedade brasileira dos verdadeiros
problemas.
2.
Primeiros passos rumo à Missão
Rodolfo
Lunkenbein (1939-1976), alemão de nascimento, salesiano por opção e, com a
graça de Deus, mártir em terras indígenas, foi, pelas duas estadias em épocas diferentes
no Brasil, um missionário pré e pós-conciliar. Nascera como filho de pequenos
lavradores no dia 1º de abril de 1939, em Döringstadt, no sul da Alemanha.
Depois de descobrir uma biografia de Dom Bosco, com 11 anos, queria estudar no
internato salesiano de Bamberg. A família não tinha os recursos para custear o
sonho do filho, que queria ser missionário. Finalmente, pela mediação do
pároco, já com 14 anos de idade, em 1953, foi aceito no aspirantado de Buxheim,
onde foi aluno do colégio Marianum de 1952 a 1958. Os que conheciam “Lunke”,
como foi chamado pelos colegas da escola, o descrevem como um jovem alegre,
aberto, piedoso.
Em
1958, o novo inspetor salesiano do Mato Grosso trouxe de sua terra natal, da
Alemanha, um grupo de jovens missionários e seminaristas ao Brasil, entre os
quais se encontrava Lunkenbein, que logo no ano seguinte fez seu noviciado em
Pindamonhangaba (SP). Seguiram os estudos de filosofia e formação salesiana em
Campo Grande (1960/1962). Entre 1963 e 1965 foi destinado para a Missão
Salesiana de Meruri/MT, onde fez seus anos práticos como professor e educador com
aulas para as crianças dos Bororo, dos fazendeiros e dos posseiros da região. Ainda
encontrou tempo para mostrar suas habilidades para consertar motores e máquinas
da missão, símbolos do progresso civilizatório e da missão desenvolvimentista.
Ninguém
falava ainda de demarcação da terra dos Bororo, os mesmos Bororo que Claude
Lévi-Strauss, 40 anos antes tinha visitado. O antropólogo ilustre dedica
elogios generosos e críticas severas à Missão Salesiana da época. Elogios, por
ter junto com o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) conseguido acabar com os
conflitos entre índios e colonos e por ter realizado “excelentes pesquisas etnográficas”.
Críticas, ao chamar a atividade missionária dos discípulos de Dom Bosco “um
empreendimento de extermínio metódico da cultura indígena”. Lévi-Strauss, que
entre 1935 e 1939 era professor de sociologia na Universidade de São Paulo
(USP), admite que esse extermínio não foi completo. Conta o antropólogo, que
seu intérprete e principal informante na aldeia de Kejari, tempos antes tinha
sido levado pelos missionários à Roma. Foi apresentado ao Papa por causa de
suas habilidades bilíngues que demonstrariam o sucesso catequético da missão.
Mas, depois do retorno à sua aldeia, conta o professor, o índio sofreu “uma
crise espiritual, da qual se saiu reconquistado pelo velho ideal bororo: foi
instalar-se em Kejari, onde desde há dez ou quinze anos, seguia uma vida
exemplar de selvagem. Inteiramente nu, pintado de vermelho, com o nariz e o
lábio inferior trespassados pela pequena barra e um adorno labial, o índio do
Papa revelou-se como um maravilhoso professor de sociologia bororo”
(Lévi-Strauss, p. 203). O antropólogo da França, pelo seu livro “Tristes
Trópicos”, deu fama aos Bororo, o missionário da Alemanha ajudou na recuperação
de seu território e deu a sua vida.
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