No dia 8 de dezembro de 2015, festa da
Imaculada Conceição e dia do cinquentenário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano
II, o Papa Francisco inicia a celebração de um “Jubileu Extraordinário da
Misericórdia”, com a abertura da Porta Santa. O papa aproveita uma antiga
tradição judaico-cristã (cf. Lev. 25), que a cristandade celebrou pela primeira
vez no ano 1300, para envolver povo e hierarquia na continuidade criativa do
Concílio, e para cobrar da Igreja a Missão de anunciar e praticar o “Evangelho
da Misericórdia” (EG 188). Ao mesmo tempo pode-se entender esse Ano Santo
antecipado ou “extraordinário” como sutil aviso, que o Papa Francisco não conta
alcançar, em sua função de “bispo de Roma”, o próximo Ano Santo Ordinário, que
seria em 2025.
Já na Evangelii gaudium Francisco nos avisou: “O tempo é superior ao
espaço” (EG 222-225). O tempo significa “processo”, “transformação”, “saída”, “kairós”, “Igreja acidentada, ferida,
enlameada”. O espaço, porém, significa “poder”, “colonização”, “latifúndio”, “escravidão”,
“desigualdade”, “Igreja – Cidadela privilegiada” ((Misericordiae vultus/MV, 4). O Ano Santo procura recuperar o
horizonte do bem viver e interromper os vícios do espaço.
Maria,
a misericordiosa desatadora dos nós
Em 1986, por ocasião de sua estadia de
alguns meses na Alemanha, o então Jorge Mario Bergoglio descobriu em Augsburg, na
Igreja dos jesuítas de São Pedro, o original da imagem de Nossa Senhora
Desatadora dos Nós. Logo, Bergoglio tornou-se um eficiente divulgador e adepto
dessa devoção à qual até então ninguém deu a mínima atenção. Através da imagem
de “Maria Desatadora dos Nós”, Francisco transformou a imagem da “Puríssima”
(em Cuba) e da “Imaculada Conceição”, cujo olhar é voltado ao céu, em mulher do
povo. A “Desatadora dos Nós” olha sempre para os que vieram da grande aflição e
pedem “sua mão” para desatar o emaranhado de nós de sua vida. A Desatadora dos
Nós nos aguarda na “Porta da Misericórdia” (MV 3), não em Roma para conseguir, ex opere operato, uma “indulgência
plenária” e animar o comércio local. A “Porta da Misericórdia” encontramos
aberta sempre quando alguém “rompe a barreira de indiferença” (MV 15) “nas mais
variadas periferias existenciais”.
Deus
olhou nele com misericórdia
Desde jovem estudante, o Papa
Francisco se achou guiado pela misericórdia de Deus. Seu escudo de bispo e papa
resume essa experiência de Deus misericordioso em sua vida: “Olhou-o com
misericórdia e o escolheu” (miserando atque
eligendo). É na casa de Mateus, cobrador de impostos e marginal social, que
Jesus defende a misericórdia para com publicanos e pecadores contra o rigorismo
dos fariseus: “A salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia”
(EG 112), revelada por Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos
comunica a misericórdia infinita do Pai” (EG 164).
A
misericórdia não substitui a justiça, mas a ultrapassa: “Jesus vai além da lei,
a sua partilha da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permite
compreender até onde chega a sua misericórdia” (MV 20). Segundo Santo
Agostinho, “é mais fácil que Deus contenha a ira do que a misericórdia” (MV
21).
A missão
dos eleitos, de Davi e Pedro, de Paulo e Agostinho não aconteceu por causa de
seus méritos, mas por causa da misericórdia de Deus. O povo de Israel
compreendeu a Lei como Dom do amor de Deus, não como castigo. A misericórdia é
uma herança da “espiritualidade judaica do pós-exílio que atribuía um especial
valor salvífico à misericórdia” (EG 193).
Pecado irreversível?
Já nos
primórdios do cristianismo surgiu a questão do pecado irreversível, que deveria
ser castigado com exclusão da comunidade cristã e sem possibilidade de uma
intervenção misericordiosa. No caso dos batizados, que cometeram um pecado grave,
a Igreja optou pela não exclusão desses batizados impondo-lhes uma prática
penitencial que permitiu uma posterior reconciliação com a comunidade. Mas, até
o início do Vaticano II, havia também casos de exclusão definitiva, seguindo a
definição da Bula Cantate Domino, do
Concilium Florentinum, de 1442. Esse concílio definiu, “que ninguém que vive fora da Igreja
Católica, nem pagãos, judeus, heréticos ou cismáticos participarão da vida
eterna, mas que irão para o fogo eterno `que é preparado para o diabo e seus
anjos´ (Mt 25,41)”. Recentemente, nas discussões sobre a acolhida dos
divorciados na comunhão eucarística, o Sínodo sobre “A Vocação e a Missão da
família na Igreja e no mundo contemporâneo” (2015) revelou divergências
profundas.
Para
estabelecer um consenso possível nessas questões, que são sobretudo de ordem
cultural, o Papa Francisco propôs
a realização de um Ano Santo da Misericórdia e deu para entender, que somente a
sinodalidade como modus operandi e a
misericórdia, como modus vivendi nos
areópagos e nas periferias de hoje, seriam capazes de propulsionar a “conversão
pastoral”. Conversão pastoral significa transformação missionária da Igreja e a
Igreja missionária, por sua vez, é uma “Igreja em saída” (cf. EG 20-33),
simbolizada pela porta aberta. Na “Porta da Misericórdia” se manifesta a onipotência de Deus
(cf. EG 37). Em sua onipotência, Deus se faz pequeno como no presépio e na
cruz.
Retomar
o Vaticano II e a missão
Alguém poderia perguntar: “O que o
cinquentenário do final do Concílio tem a ver com a misericórdia”? Francisco
responderia, provavelmente, com as palavras de João XXIII: “Nos nossos dias, a
Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade”
ou com as palavras de Paulo VI: “Desejamos notar que a religião do nosso
Concílio foi, antes de mais, a caridade” (MV 4). A comunidade missionária
precisa constantemente aprender de Deus o “desejo inexaurível de oferecer
misericórdia”, de “tomar iniciativa sem medo”, de “procurar os afastados e
chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos” (EG 24).
Ao abrir o portal do Ano da
Misericórdia em nossas comunidades vamos reconhecer, novamente, a nossa
identidade mais profunda como liberdade e solidariedade. A liberdade na porta
aberta do centro nos impulsiona para a solidariedade na periferia. E o encontro
nas periferias humanas é o início de uma aliança da misericórdia que nos faz
reconstruir um mundo sem centro e sem periferia.
Paulo Suess
Eis uma preciosa síntese do pensamento e da prática de nosso querido Papa Francisco, a feliz escolha, inspiração do Espírito Santo, para conduzir, animar, fortalecer e mostrar o caminho a todas as pessoas de boa vontade, da reconciliação, do perdão, da partilha, da solidariedade e do bem viver!
ResponderExcluir