O pedido de perdão do Papa Francisco
aos povos indígenas por pecados cometidos, em nome de Deus, durante o regime
colonial, está em contradição com a canonização de frei Junípero Serra,
missionário daquela época.
Pedido de
perdão na Bolívia
Em seu discurso aos movimentos populares, no Equador, dia 9 de julho/2015, o Papa Francisco pediu perdão aos povos indígenas pelos “muitos e graves pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus”. O papa pede “humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América” (cf. sítio do Vaticano, 09.07/2015, n. 3.2.).
Ao pedido de
perdão segue, como é costume em documentos que passaram pela “revisão” curial,
um “porém” sobre a graça que superabundou na desgraça da conquista, um
autoelogio eclesial sobre “tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram e
pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão”. Estes arautos da
evangelização, segundo o mesmo discurso de Francisco, “deixaram impressionantes
obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos
indígenas ou acompanhando os próprios movimentos populares mesmo até ao
martírio”, não sem lembrar que “a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé
desafia a tirania do ídolo dinheiro”.
Há um descompasso entre o “pedido de
perdão” pelos pecados contra os povos nativos da América e a
“autorreferencialidade” de “impressionantes obras de promoção humana” que fizeram
os índios trabalhar no regime da encomenda colonial. Há outro descompasso entre
posturas da teologia e pastoral da libertação do século XX que, na contramão da
teologia hegemônica pós-conciliar, acompanharam os povos indígenas e “movimentos
populares mesmo até ao martírio” e as pastorais que procuravam integrar os
povos indígenas e populares nos sistemas colonial, mercantilista e capitalista.
Percebe-se que o papa permitiu enxertos
ideológicos em seu discurso que o enfraqueceram profundamente. A teologia
colonial considerou os índios não como sujeitos de culturas, mas como objetos
da natureza e por isso os chamou de “los
naturales”. O dominicano Bartolomé de las Casas documentou as crueldades
genocidas da conquista. Sua luta contra a exploração da força de trabalho dos
índios e a de Antonio Montesinos, foram lutas solitárias como as lutas de Oscar
Romero, Leonidas Proaño, Samuel Ruiz e Tomás Balduino foram solitárias.[1]
Canonização de Junípero nos Estados Unidos
Ao pedido de
perdão, do dia 9 de julho/2015 na Bolívia, acompanhado pelo aplauso dos índios
presentes no evento, segue, sob o protesto de muitos indígenas dos Estados
Unidos e do México, a canonização de Frei Junípero Serra (1713-1784), no dia 23
de setembro em Washington.
Quem era o franciscano Junípero
(1713-1784) e a quem serve sua canonização? Filho de pequenos agricultores,
nasceu em Petra, na ilha Maiorca. Tornou-se franciscano e chegou a lecionar
teologia na Universidade de Palma. Em 1749, Junípero chega com 20 frades no
Vice-Reino da Nova Espanha (México). Depois da expulsão dos jesuítas da Nova
Espanha (1767/68) por Carlos III, os franciscanos assumem, sob a
responsabilidade de Junípero Serra, o cuidado dos indígenas na península Baixa
Califórnia, que na época ainda pertencia ao império da Espanha. Os frades
percorreram os vastos territórios de presença indígena, ergueram capelas e
cabanas, convidaram os índios para morarem perto para poder ensiná-los
catequese e fixa-los à terra através de noções de agricultura e pecuária. Os confrades de Junípero se tornam fundadores
de uma vasta rede de missões nas quais os índios, progressivamente, passaram de
donos da terra para inquilinos das missões onde foram submetidos a trabalhos
forçados. Quem fugiu dessas missões, foi trazido de volta por soldados e
castigado.
Quando os índios falam hoje daquele
tempo, relatam “atrocidades”, “etnocídios” e “mitologias das missões”, criadas
pelos não indígenas da elite católica e política regional, que propulsionou a
canonização de Junípero Serra. Andrew Galvan, historiador indígena e curador da
“Missão Dolores”, fundada por Junípero em 1776, pergunta: “Se eu sei o que
aconteceu com os meus antepassados, como posso ser devoto de Junípero Serra?” E
Galvan cita uma carta “na qual o frei Serra ordenava chicotadas para os índios
desobedientes”.[2]
Desde que o Papa Bento XVI, por ocasião da
beatificação de João Paulo II, esclareceu que a pessoa beatificada ou
canonizada necessita ter vivido apenas uma virtude heroicamente, não precisamos
discutir a santidade de Junípero que, certamente, mais de uma virtude viveu com
o heroísmo da época. O que precisa ser discutido é a oportunidade de sua
canonização. Muitos dos “Santos Padres”, por exemplo Agostinho e Ambrósio,
hoje, seguramente, não seriam mais canonizados porque seus sermões e atitudes
antijudaicas seriam considerados não só politicamente incorretos, mas pérfidos
e até criminosos.
A pergunta correta no contexto da canonização de Junípero é:
Cui bono (a quem beneficia) hoje? Será
que um Santo Junípero vai fortalecer as lutas dos povos indígenas ou vai
legitimar o paternalismo e autoritarismo dos seus tutores e enfraquecer suas
lutas pelo reconhecimento de seus direitos, de suas culturas e
autodeterminação? A “Igreja em saída” não sobreviverá nos passos de um tango:
“Dois pra lá e dois pra cá”. Pode acontecer que, ainda em vida de Francisco, os
novos horizontes de uma Igreja em saída são apagados pelas neblinas da herança
colonial.
Paulo Suess
[1] LAS CASAS, Frei
Bartolomé de, Brevíssima relação da
destruição das Índias: O paraíso destruído, Porto Alegre, L&PM, 1984.
Cf. SUESS, Paulo (org.), Conquista
espiritual da América Espanhola: 200 documentos – Século XVI, Petrópolis,
Vozes, 1992.
[2] “Índios
dos EUA levantam dúvidas sobre a santidade de Junípero Serra”, reportagem de
Carol Pogash (The New York Times,
21/01/2015), republicado em IHU, Notícias, 23/01/2015. Cf. tb. a entrevista de
Thomas Reese com Roberto Senkewicz “Junípero Serra, santo ou não?”, in: National Catholic Reporter (15/05/2015),
republicado por IHU, Notícias, 28/05/2015.
Análise irretocável. A exposição leva a uma reflexão sobre a "Igreja em saída" - estaria em consonância com os anseios dos protagonistas/destinatários da Evangelização, nos dias atuais?
ResponderExcluirA herança colonial ao impregnar, de maneira indelével, as características paternalistas e autoritárias, nos meios eclesiásticos, até quando vai sujeitar aquela situação histórica ao contexto hodierno?
Mesmo que não vejamos mudanças substanciais hoje - haja vista os avanços do Papa Francisco, embora contido pelos conservadores, esperemos que a coragem e vanguardismo dos audazes permitam às próximas gerações o reconhecimento dos erros passados e a reconciliação com a Verdade, a Justiça e verdadeira Fraternidade com todos, sem exceção!